Preparado(a) para mais um conto?
O de hoje chama-se Um Homem e sua Fidelidade.
Relembrando que esse trabalho faz parte da antologia IMPREVISTOS DE UMA VIAGEM COTIDIANA, de Mary Difatto.
Toda quinta-feira, um conto novo para você!
Bons "imprevistos de viagem"!
UM HOMEM E SUA
FIDELIDADE
Ele era um daqueles homens casados; do trabalho para a casa, da casa
para o trabalho.
Vagner era casado na consciência plena do que é ser casado. Dos sérios
que levavam a sério os preceitos conjugais como cumprimento de contrato
assinado.
Dos poucos
que usavam aliança, a ajeitava, nos momentos de “perigo” feito arma, para
espantar supostas pretendentes. Era só ver alguma mulher interessada nele,
exibia o anel de aro grosso de ouro maciço no anular esquerdo, apoiando a mão
no rosto, fingindo cofiar uma barba inexistente. Logo virava o corpo inteiro
para o outro lado, e se sentia “vingado”.
Era casado. Há quatorze anos. Tinha três filhos. Um adolescente e duas
meninas.
Não era
religioso, e nem teve bons exemplos em família, de casamentos felizes.
O pai era do tipo mulherengo, que não parava com parceiras por mais de
seis meses.
Casado de morar
junto com alguém, seu pai tivera uns sete relacionamentos.
Fora os arremedos
de romance extraconjugais.
A mãe não
era leviana. Até fazia o tipo bem responsável, aquela que todo mundo define como mulher de família.
Mas, mesmo
ela, não transmitia um modelo matrimonial para o filho se espelhar. Por pura
falta de sorte, seus relacionamentos se mostravam conturbados, o que a levava a
dar um ponto final. Estava naquela época no seu terceiro casamento que, por já
durar perto de trinta e cinco anos, parecia ser o mais aproximado do ideal de
uma relação, ao menos, estável. Quanto a isso, ninguém poderia dizer nada além.
Neste cenário de romances fugazes
ou não, Vagner tinha oito meios-irmãos.
No entanto,
só gostava realmente de um: o filho que sua mãe teve com o italiano com quem
estava casada atualmente. Ele era inteligente, falastrão, gesticulava, tinha
bom humor. A diferença de idade entre eles era de nove anos, contando que
Vagner era o mais velho, com seus 39, e o rapaz, 30. Sempre apoiava Vagner em
tudo, o ajudava, sempre por perto para o que desse e viesse. Um irmão. Sem o
meio.
Qualquer um
afirmaria que Vagner tinha obsessão por fidelidade, para não ter que passar
pelos mesmos problemas que os pais; por ele trazer em si uma ojeriza só em
imaginar ter filhos de múltiplos envolvimentos
amorosos.
Mas, não. Não
era isso.
Ele era correto. Gostava de tudo muito certo, e até previsível, à
conclusão que sempre chegava nas muitas vezes que se auto questionava.
“Por que não ser fiel num relacionamento conjugal? Por que fica todo
mundo achando estranho quando digo que não cobiço mulher nenhuma? Por que
algumas colegas ficam me aborrecendo para tomar chopinho na volta do trabalho?
Por que eu tenho que trair?”
Conhecia a
história dos amigos. Todos tinham amantes por toda a parte. Contavam
particularidades mais picantes, de tamanho, de fundura, de cor, de penugem, de
vezes, e até de não vezes...
Era de
costume uma gargalhada indecente sobre esses fatos, uma sublimação dos feitos
como se as mulheres fossem prêmios, independentemente do quanto de tempo eles
levassem para conquistá-las. Vagner só fazia ouvir. Ele tinha filhas...
Na fábrica
onde trabalhava, seu horário era o matutino. Pegava de seis às quatorze horas.
Como o seu
tempo na empresa beirava quase vinte anos, fora promovido a supervisor de
produção, com o salário um tanto maior que o dos seus colegas o que, por um
motivo muito válido, não lhes causava inveja: ele sempre liberava, junto ao RH,
aqueles que precisassem sair mais cedo.
Sabia que
muitos ali inventavam desculpas, mas deixava passar. A única ressalva que fazia
é que só poderia ter aquela conduta uma vez por mês, se não, seria ele chamado
a atenção. Vagner também obedecia ao seu superior, o gerente, um cara meio
mal-humorado, que não era tão condescendente quanto ele.
Ocorreu que,
para cobrir o afastamento do supervisor da tarde – que saíra para se tratar de
hérnia de disco -– estava sendo obrigado a estender sua jornada trabalhista até
as 18 horas, onde o da noite também pegava mais cedo, para ajudar por aquele
período.
Ele
não gostou nada da mudança, mas era necessário. Mal iniciando essa nova rotina,
já teve gente pedindo:
–
Posso sair mais cedo hoje? É que estou tratando dos dentes, sabe? A
minha dentista só tem hora a partir das 4...
– Você já marcou com muita antecedência?
–
Não... Na verdade, é... nem marquei. É que eu sei que ela está com a
agenda cheia...
Balançando a
cabeça em desaprovação, Vagner, que não tinha motivo algum para manter uma
cordialidade a mais com aqueles funcionários, já que não teria contato com
nenhum deles por muito tempo, se limitou a dizer apenas, sem comiseração:
–
Sinto muito – com gravidade na voz –, mas eu não posso permitir
qualquer um sair, só porque quer ir resolver problemas pessoais. Ainda mais
que, no seu caso, nem agendado está o seu compromisso...
– Mas eu ia lá para saber se
dá para ser atendido!
–
Use o telefone na hora do almoço. Marque primeiro! Não posso abrir
exceção para ninguém. – sentindo que o funcionário iria falar algo insistente:
– Marque primeiro. Aí, sim, posso
pensar no seu caso. Sem marcar, não tem conversa. Simples assim!
Sentindo-se
ofendido, o rapaz resmungou, de maneira quase inaudível, se afastando:
– Se fosse o
nosso supervisor, ele não ia nem perguntar o motivo!... Vagner escutou, e
comentou baixinho, o suficiente para o funcionário ouvir:
–
Se fosse o seu supervisor, você não teria nem começado a falar. Conheço
bem a fama dele por aqui...
No final
daquela semana arrastada, já na sexta-feira, onde Vagner demonstrava visíveis
sinais de cansaço (acordava todos os dias às 4h30min., tendo aumentada mais
quatro horas em sua jornada), resolveu se atrasar, deliberadamente, para o
turno vespertino. Deixou avisado com as meninas do escritório, e se permitiu um
longo almoço, deitando-se no refeitório numa esteira usual de quem queria tirar
um sono pós refeição. Ficou sozinho e feliz.
De repente
acordou, sobressaltado, caçando qualquer objeto que informasse as horas. E
existiam vários, a começar pelo grande relógio vermelho redondo pendurado acima
da mesa dos funcionários.
“Caraca!
4h13min... Era para eu dormir, mas não tanto...”
Levantou-se
às carreiras, lavou o rosto, deu uns tapinhas intercalando as faces para
despertar, penteou os cabelos. Ajeitou a camisa branca social, apertando o
cinto que afrouxara ao deitar-se, logo em seguida. Quando resolveu descansar,
não queria que nada o apertasse. Até mesmo a aliança tinha tirado do dedo e
colocado no bolso da calça.
Ao entrar
no vasto salão onde se produzia cosméticos, Vagner notou que a barulheira
característica o avisava que ainda não estava em vigília de todo: um mundo
explodia em sua cabeça naquela hora. “Eu daria tudo para estar em casa...”
Parecendo
ansioso, lá vinha novamente o mesmo funcionário do seu primeiro dia vespertino, aquele da dentista não
marcada, meio bufando por ter corrido. Havia largado a máquina de etiquetar,
para comunicar ao supervisor:
–
Foi até bom o senhor aparecer. Tem uma moça aí que veio estagiar na
empresa. Ela queria falar só com o senhor.
– Estagiar? No que ela está se formando?
–
Em Administração de Empresas. Disse ela que escolheu essa fábrica
porque fica perto de casa. Daqui a pouco vai estar de volta...
Encolhendo os
ombros, Vagner só balbuciou:
– ‘Tá bem. Conversamos quando
retornar... Obrigado!
O rapaz deu
um sorriso, e voltou ao serviço. Naquele momento, o supervisor teve um estalo
de simpatia por ele. Percebeu que o funcionário era do tipo que gostava de boa
vida na empresa, mas que também fazia o gênero colaborador. Um cara que joga a
letra para ver se forma palavra, apenas isso...
“Agora essa... Estagiária! Logo hoje que eu não estou
legal, com a cara amassada... Se ela fizer anotações falando mal da empresa?
Merda... Logo hoje!...”
Não demorou muito para entrar uma moça perto dos 30 anos,
parecendo bem objetiva ao encaminhar-se até o supervisor:
– É você o Vagner?
Ele estava virado de lado, num esmero de elegância e limpeza, com o
rosto demonstrando maior atividade; o ar sonolento fugira há meia hora.
Com uma
prancheta providencial para vender imagem de líder sério, respondeu:
– Sou eu mesmo! Com quem eu falo?
–
Meu nome é Monalisa, e tenho interesse em estagiar aqui. Estou me
formando, faltam só dois períodos. Moro perto...
–
Monalisa... Você não fugiu do quadro não, né? – pilheriou ele, com
delicadeza. Mesmo assim, achou que ultrapassara os limites: – Ah, me desculpe a
brincadeira. É que é irresistível...
Ela sorriu. Sorriu abrindo dimensões reprováveis em um certo coração.
Sorriso inebriante. Sorriso...
–
Todo mundo brinca com o meu nome, fique tranquilo! Na verdade, quando
meus pais o escolheram, já fizeram a propósito. Foi um jeito bem legal para
ninguém esquecer dele...
Ele
sorriu timidamente, grudando com o olhar, na boca do sorriso fascinante.
Voltando ao profissionalismo, perguntou solenemente:
– Mas, Monalisa, como posso ajudá-la?
–
Eu preciso passar, ao menos um mês, 3 vezes por semana, em uma empresa,
para saber como é a rotina de gerenciamento. Saber como lidar com os funcionários, como preencher fichas, estar a
par dos problemas e soluções, e tudo o mais. Sentir o clima de uma empresa,
sabe como é?
–
Sei. Bem, você pode vir. Mas eu vou poder assinar os papéis de estágio?
Acho melhor falar
com o gerente...
–
Não precisa. É qualquer pessoa da empresa que seja chefe do seu setor.
Você não é o responsável pela supervisão? Sua carteira não é assinada como
supervisor?
– Sim! – disparou com avidez.
–
Então, sem problemas. Como eu te disse, meu curso só quer que eu esteja
no clima de trabalho na minha área, para quando eu tiver a minha própria
empresa. Apesar de eu já ter uma, bem pequena, e experiência também, eles
querem que alguém assine por isso...
–
Ótimo! – falou Vagner, animado. – É só agendar direitinho, os dias e os
horários, que eu te receberei com o maior prazer!
– Posso começar agora?
O
supervisor engasgou-se, mas de maneira contornável. Temia que a moça percebesse
alguma irregularidade.
– Pode, sim! – já recomposto –
Fique à vontade!
Monalisa
correu os olhos em tudo, estranhando ter conseguido manter uma conversa, mesmo
com o vozerio ensurdecedor.
“Nasci para
isso! Só pode ser...”, riu consigo mesma.
Por sua vez,
Vagner utilizou-se de sua prancheta para se “esconder”. Estava atônito, mas não
podia demonstrar. Fingiu fazer anotações inadiáveis, correndo de um lado ao
outro, passando coordenadas, franzindo as sobrancelhas, vendendo imagem de
concentração.
No fim do
expediente, Monalisa deu um tchau, sumindo-se com a tranquilidade de quem mora
muito perto, que chegaria na hora adequada para tomar um banho, jantar e
rumar-se para a faculdade.
Mais do que
imaginava, a estagiária ficou nos pensamentos de Vagner, por tempo bem mais
além do aceitável.
Ela voltaria na segunda, às 16h., cumprindo com a meta das 3 vezes
semanais, sempre no mesmo horário.
Vagner
passou o fim de semana inteiro afoito pelo novo encontro. “Só estou curioso. Eu
nunca tive estagiários...”, desculpou-se.
Às segundas,
quartas e sextas Vagner retirava a aliança. Ao contrário de todas as outras
mulheres - para as quais fazia questão de exibi-la-, para Monalisa optava em
estar “descompromissado”, dando pinceladas de sua vida, como falar da filha de
onze anos, sem sugerir conexão marital com ninguém; dava a impressão de que a
menina era fruto de um relacionamento dentro de uma solteirice mais animada.
O sorriso,
uma constante de Monalisa, bailava aberto e afável a cada comentário
inteligente dele, que era um homem que parecia saber das coisas.
– Você já tem uma pequena
empresa, não é mesmo?
Estavam
conversando na hora do lanche rápido de quinze minutos.
–
É, de roupas e bolsas. Mas nem pequena é. Podemos chamá-la de loja de
quintal. A minha mãe que toma conta quando não
estou.
–
É uma pequena empresa, sim, por que não? Não esqueça que muita gente
enriqueceu começando com micros negócios, envolvendo a família inteira. Todos
cresceram juntos!
–
Se você está falando, está falado!... – o tom de voz dela funcionou
para Vagner como sensualidade. Monalisa estava paquerando o supervisor.
– Está na hora de voltarmos,
né? – avisou Vagner.
–
Ãhan. Bem na hora mesmo... – ela também pressentiu que aquele caminho
estava mal trilhado. Era melhor ir com calma.
Com o passar dos dias, Vagner se pegou usando as melhores calças, as
melhores camisas - ele que não precisava usar uniforme - e infamemente, pedia à
esposa para passar com afinco suas roupas, sobretudo nos dias da Monalisa na
fábrica.
A mulher não
estranhava porque pensava ser algo a ver com a vigilância sanitária, que
averiguava todos os setores, desde o funcionamento correto de produção, até
mesmo as vestes dos funcionários.
Vagner e Monalisa se encontravam no costumeiro refeitório, um tanto vazio
na hora que iam. Sempre se sentavam de frente um para o outro, e Vagner
carregava a prancheta consigo.
–
Vou ficar mais dois meses aqui, Vagner. – informou a moça, bebericando
o café extremamente quente. – Fui conferir com a minha professora, e ela disse
que eu terei que cumprir com uma carga horária maior de estágio, para eu não
ficar dependente depois. Achei meio chato, mas ainda bem que você é um cara
super maneiro!
–
Por mim, não me importo. O negócio é você cumprir direitinho para não
dar rolo. Essas burocracias é que atrapalham...
Fez um discurso o mais profissional possível, para não transparecer
contentamento.
– Agora você já sabe que vai
ter que me aguentar por mais tempo...
Ao acabar de
falar, Monalisa sorriu. Sorriso franco, entorpecedor, de alguma deusa existente
ou inventada, não misterioso como a da Gioconda, a inspiradora de seu nome.
Sorriso magnífico, inebriante. Existente ou inventada, ela era a deusa Sorriso
Perfeito.
Logo, com um
pouco mais de dias, Vagner descobriu-se apaixonado: “Não posso, sou casado...”
Ele era um
homem correto. Tinha se definido assim por várias vezes.
Mas era algo novo que se abria em sua existência, e ele precisava estar
ciente de tudo. Porque o julgavam sapiente e um cara correto, o suficiente para
procurar soluções quando estas não estavam ao alcance. É assim que agem os
homens verdadeiramente corretos.
Foi se
aconselhar com o único irmão reconhecido por ele:
– Tenho uma coisa que quero
desabafar contigo, e não é de hoje...
O filho do
italiano assistia ao jogo de futebol na internet, de transmissão ao vivo, do
campeonato europeu. Era brasileiro e se sentia assim, mas a Itália tinha um
lugar poderoso em seu coração.
–
Deixa só terminar esse lance, só esse, ‘tá? Se o Juventus tomar um gol
agora, está fora do campeonato...
Dito e feito. Saiu o tal gol, e o Juventus, time favorito do irmão de
Vagner, estava fora. Ficou praguejando uns minutos, para logo cumprir o que
afirmara ao mano mais velho:
– Que bicho ‘tá pegando, rapá?
Há muito tempo não te via assim...
–
Uma parada meio sinistra... – riu de si mesmo Vagner, que não era dado
a gírias, mas que perto do irmão, aflorava nele essa nuance no seu linguajar.
– Pode falar...
Vagner
ajustou-se melhor no sofá, desafiado por um olhar profundo do irmão, o
único sem o meio.
Foi logo no alvo de suas dúvidas:
– Seja
sincero: você já traiu a sua mulher? O irmão era casado há cinco anos.
– Claro! – respondeu sem
titubear – Por que? Você não?
A resposta
pronta e imediata surpreendeu negativamente o irmão mais velho:
– Não... Nunca! Será que é tão
óbvio assim um homem trair sua mulher?
– Faz parte
da vida, cara, desde que o mundo é mundo... É natural! O irmão mais velho
continuava surpreso:
– Mas você começou a trair
quando? Foi logo depois que casou?
–
No início, não; o casamento era novidade. Depois de um ano mais ou
menos, aí eu comecei a conhecer umas minas, e começou a rolar... Não parei mais!
–
Eu jurava que você amasse sua mulher... – comentou Vagner, totalmente
abismado.
–
E o que o amor tem a ver com isso? Meu amor por ela é inabalável, a
mulher mais incrível que já conheci! Mas nada me impede de dar minhas
voltinhas, né? – observou o rosto abalado que o fitava com ar de desespero -
Por que você está me perguntando tudo isso?
–
Por que, pela primeira vez, eu penso em trair. – interrompeu-se – Estou
perdidamente apaixonado. Apaixonado de pedra!...
Resolveu
contar toda a história ao irmão, que o ouvia atentamente, sem interrompê-lo uma
só vez sequer. Era difícil ver Vagner sem controle, sobretudo em relação às
coisas do coração.
–
O que devo fazer? Estou apaixonado, apaixonado mesmo... Até mais: estou
amando aquela garota! Muito, muito mesmo... – explicou Vagner, no término de
sua retórica.
–
Simples: – respondeu o irmão – fica com ela! Não precisa se separar de
sua mulher. Fica com ela enquanto estiver legal, sacou? Vai levando em
banho-maria... Só não deixa essa mina escapar. Depois, você vai se arrepender
para o resto da vida...
– Isso não está certo! Sou um
homem sério. Sempre fui fiel...
–
Você pediu minha opinião, e estou te mandando uma real: fica com essa mina!
Se não, você nunca
vai se perdoar, segue a minha dica!...
Quando
Vagner nem se dava conta, o estágio de Monalisa chegava ao fim, mais ou menos
no período que o supervisor da tarde estava para retornar.
–
Hoje é o meu último dia, como você sabe. – Monalisa ressaltava a
informação no final do expediente, roendo um biscoito amanteigado que trouxera
de casa. Parecia insatisfeita,
falando aquelas palavras quase que soprando por entre os dentes.
–
Você se saiu muito bem! – elogiou comedidamente o supervisor – Reparei
que você tem capacidade de liderança, e sabe contornar chateações com os funcionários de maneira exemplar! Na área
de avaliação, de um dos ofícios que você
me entregou, eu coloquei que você está inteiramente apta para administrar qualquer empresa.
– Obrigada! Você tem sido um amor!...
– Imagine! Você merece! É
responsável, centrada, ágil, correta... “E tem
o sorriso
de deusa, a deusa Sorriso Perfeito”, pensou ele, que abanou a ideia tão logo a
formou. – Sua loja vai prosperar, você vai ver!
Não tinha muito o que dizer. Monalisa apenas sorriu e olhou fundo nos
olhos do seu não mais responsável pelo setor que estagiara. Agora a sua frente
estava ele, simplesmente Vagner, o homem que estava preenchendo seus sonhos de
todas as noites.
Era preciso
coragem. E ela teve. Ficou feliz por o nosso tempo ser outro, longe daqueles em
que ela iria se calar no anonimato do sentimento solitário:
– Vamos sair qualquer dia? Sem compromisso, só para a gente conversar
um pouco...
Vagner estava dignamente trajado. Tinha pedido à mulher para separar a
camisa que mais gostava, verde, de botão, que cobria um tanto o cotovelo, e ele
mesmo fora ao armário para procurar a calça branca, que casava magnificamente
bem com a verde camisa. O tênis era um mocassim preto, que alguns definiam como
sapatênis. Daquele modo, estava apresentado ao mundo, como as pessoas
usualmente chamam de galã.
Vendo aquele sorriso, o sorriso da deusa Sorriso Perfeito, enxergando
nos seus olhos um futuro que poderia ter, de motivação, de trocas de
experiências, de aprender melhores formas de liderança e gerenciamento, na
empresa e na vida, do quanto ele poderia ter a paz do reconhecimento da igual
ao seu lado, um mundo de não-traições, porque a ela seria fiel por amor, não
por ser correto, Vagner baqueou em sua ideologia da correção.
Talvez seu irmão estivesse certo, ao dizer que ele se arrependeria se
não tentasse algo com Monalisa.
Talvez o correto fosse se entregar aos sentimentos porque eram de uma
profunda limpeza em sua alma.
Talvez uma
simples saída com uma mulher não se configurasse em erro.
Talvez trair a esposa – que não amava desde sempre; só casou-se com
ela porque engravidou – não mudasse os critérios de correto, pressuposto na
letra fria da lei conjugal.
Contudo, na ligação automática que os homens corretos fazem com o que
a mente treinara por hábito, Vagner colocou a mão no bolso direito, e de lá
tirou a aliança de ouro, uma aliança grossa, pesada, maciçamente opressiva para
desavisadas que flertam com homens casados, sem saberem que eles são.
Ajeitou-a no dedo anular esquerdo, exibindo do mesmo modo que fazia
sempre, ao perceber que havia uma mulher interessada em romance.
– Sou
casado... Não posso!... Mas, boa sorte na sua loja! Monalisa esmoreceu o
sorriso. Na hora. Para sempre. Para ele.
Saiu
trôpega, feito bêbada, e lançou ao ar apenas um amarelo tchau. Estava magoada, indubitavelmente sentida. Monalisa se sentia
traída.
“Tantas vezes a gente conversou... Por que ele não disse que era
casado? Por que nunca usou aliança antes perto de mim? Por que esse miserável
fez isso comigo?”
Vagner contava com setenta e oito anos, quando soube que Monalisa
tinha ganhado mais um dos cobiçados prêmios de melhor empresária do ano.
Sua empresa de
roupas e bolsas tinha progredido o suficiente para ela formar uma cadeia de
lojas, no Brasil e até no exterior.
Estava em
todas as mídias; era um exemplo de empreendedora honesta e ser humano
solidário. Abraçava muitas causas nobres.
Era casada com um também empreendedor importante, e estava encaminhando
a filha do meio para ser sua herdeira. Tinha dois netinhos, ainda crianças, que
adorava.
Ele, Vagner, também tinha netos. Meninos bons e inteligentes. Só um era
um pouco rebelde, mas nada que levasse a preocupações noturnas tiradoras de
sono.
Estava
aposentado da mesma empresa onde trabalhara por toda a vida. De supervisor,
passou a gerente, e por ali, ficou.
Seu salário era o
bastante para aguentar as contas do mês, e até trocar de carro de três em três
anos.
Era uma vida
boa. Normal. Correta.
Nunca mais esbarrara com Monalisa, em lugar algum, nem mesmo no bairro
do endereço da fábrica, ela que morava ali perto. A ela, Vagner procurara – e
por muito tempo ainda –, depois do seu último dia de estágio.
“Monalisa
era correta. Ela não quis ficar comigo sabendo que eu era casado. Não insistiu,
como muitas fazem. Ela era correta...”, se remoeu ainda por longos anos Vagner.
De toda a
dor que o supervisor da fábrica onde estagiara Monalisa sentia, havia uma que
nunca passava. Nunca, nunca, nunca passava.
Era a dor de uma não-resposta, o que a alma joga para baixo do tapete
mental e retorna, porque a poeira do tempo é implacável com o que não se
encaixa na razão.
Triste admitir que ele não sabia, por todo o tempo que transcorreu em
sua trajetória de vida desde que conhecera Monalisa, que ele não sabia, não
sabia, não sabia mesmo – e isso doía feito ferida exposta – a quem, nessa
história toda, ele tinha sido realmente fiel...
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