PARA QUEM AMA GATOS

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quinta-feira, 18 de julho de 2019

Um Homem e Sua Fidelidade




Preparado(a) para mais um conto?
O de hoje chama-se Um Homem e sua Fidelidade.
Relembrando que esse trabalho faz parte da antologia IMPREVISTOS DE UMA VIAGEM COTIDIANA, de Mary Difatto.
Toda quinta-feira, um conto novo para você!
Bons "imprevistos de viagem"!




UM HOMEM E SUA FIDELIDADE



Ele era um daqueles homens casados; do trabalho para a casa, da casa para o trabalho.
Vagner era casado na consciência plena do que é ser casado. Dos sérios que levavam a sério os preceitos conjugais como cumprimento de contrato assinado.
Dos poucos que usavam aliança, a ajeitava, nos momentos de “perigo” feito arma, para espantar supostas pretendentes. Era só ver alguma mulher interessada nele, exibia o anel de aro grosso de ouro maciço no anular esquerdo, apoiando a mão no rosto, fingindo cofiar uma barba inexistente. Logo virava o corpo inteiro para o outro lado, e se sentia “vingado”.
Era casado. Há quatorze anos. Tinha três filhos. Um adolescente e duas meninas.
Não era religioso, e nem teve bons exemplos em família, de casamentos felizes.
O pai era do tipo mulherengo, que não parava com parceiras por mais de seis meses.
Casado de morar junto com alguém, seu pai tivera uns sete relacionamentos.
Fora os arremedos de romance extraconjugais.
A mãe não era leviana. Até fazia o tipo bem responsável, aquela que todo  mundo define como mulher de família.
Mas, mesmo ela, não transmitia um modelo matrimonial para o filho se espelhar. Por pura falta de sorte, seus relacionamentos se mostravam conturbados, o que a levava a dar um ponto final. Estava naquela época no seu terceiro casamento que, por já durar perto de trinta e cinco anos, parecia ser o mais aproximado do ideal de uma relação, ao menos, estável. Quanto a isso, ninguém poderia dizer nada além.
Neste cenário de romances fugazes ou não, Vagner tinha oito meios-irmãos.
No entanto, só gostava realmente de um: o filho que sua mãe teve com o italiano com quem estava casada atualmente. Ele era inteligente, falastrão, gesticulava, tinha bom humor. A diferença de idade entre eles era de nove anos, contando que Vagner era o mais velho, com seus 39, e o rapaz, 30. Sempre apoiava Vagner em tudo, o ajudava, sempre por perto para o que desse e viesse. Um irmão. Sem o meio.
Qualquer um afirmaria que Vagner tinha obsessão por fidelidade, para não ter que passar pelos mesmos problemas que os pais; por ele trazer em si uma ojeriza só em imaginar ter filhos de múltiplos envolvimentos amorosos.
Mas, não. Não era isso.
Ele era correto. Gostava de tudo muito certo, e até previsível, à conclusão que sempre chegava nas muitas vezes que se auto questionava.
“Por que não ser fiel num relacionamento conjugal? Por que fica todo mundo achando estranho quando digo que não cobiço mulher nenhuma? Por que algumas colegas ficam me aborrecendo para tomar chopinho na volta do trabalho? Por que eu tenho que trair?”
Conhecia a história dos amigos. Todos tinham amantes por toda a parte. Contavam particularidades mais picantes, de tamanho, de fundura, de cor, de penugem, de vezes, e até de não vezes...
Era de costume uma gargalhada indecente sobre esses fatos, uma sublimação dos feitos como se as mulheres fossem prêmios, independentemente do quanto de tempo eles levassem para conquistá-las. Vagner só fazia ouvir. Ele tinha filhas...
Na fábrica onde trabalhava, seu horário era o matutino. Pegava de seis às quatorze horas.
Como o seu tempo na empresa beirava quase vinte anos, fora promovido a supervisor de produção, com o salário um tanto maior que o dos seus colegas o que, por um motivo muito válido, não lhes causava inveja: ele sempre liberava, junto ao RH, aqueles que precisassem sair mais cedo.
Sabia que muitos ali inventavam desculpas, mas deixava passar. A única ressalva que fazia é que só poderia ter aquela conduta uma vez por mês, se não, seria ele chamado a atenção. Vagner também obedecia ao seu superior, o gerente, um cara meio mal-humorado, que não era tão condescendente quanto ele.
Ocorreu que, para cobrir o afastamento do supervisor da tarde – que saíra para se tratar de hérnia de disco -– estava sendo obrigado a estender sua jornada trabalhista até as 18 horas, onde o da noite também pegava mais cedo, para ajudar por aquele período.
Ele não gostou nada da mudança, mas era necessário. Mal iniciando essa nova rotina, já teve gente pedindo:
  Posso sair mais cedo hoje? É que estou tratando dos dentes, sabe? A minha dentista só tem hora a partir das 4...
  Você já marcou com muita antecedência?
  Não... Na verdade, é... nem marquei. É que eu sei que ela está com a agenda cheia...
Balançando a cabeça em desaprovação, Vagner, que não tinha motivo algum para manter uma cordialidade a mais com aqueles funcionários, já que não teria contato com nenhum deles por muito tempo, se limitou a dizer apenas, sem comiseração:
  Sinto muito – com gravidade na voz –, mas eu não posso permitir qualquer um sair, só porque quer ir resolver problemas pessoais. Ainda mais que, no seu caso, nem agendado está o seu compromisso...
  Mas eu ia lá para saber se dá para ser atendido!
  Use o telefone na hora do almoço. Marque primeiro! Não posso abrir exceção para ninguém. – sentindo que o funcionário iria falar algo insistente: – Marque primeiro. Aí, sim, posso pensar no seu caso. Sem marcar, não tem conversa. Simples assim!
Sentindo-se ofendido, o rapaz resmungou, de maneira quase inaudível, se afastando:
  Se fosse o nosso supervisor, ele não ia nem perguntar o motivo!... Vagner escutou, e comentou baixinho, o suficiente para o funcionário ouvir:
   Se fosse o seu supervisor, você não teria nem começado a falar. Conheço bem a fama dele por aqui...
No final daquela semana arrastada, já na sexta-feira, onde Vagner demonstrava visíveis sinais de cansaço (acordava todos os dias às 4h30min., tendo aumentada mais quatro horas em sua jornada), resolveu se atrasar, deliberadamente, para o turno vespertino. Deixou avisado com as meninas do escritório, e se permitiu um longo almoço, deitando-se no refeitório numa esteira usual de quem queria tirar um sono pós refeição. Ficou sozinho e feliz.
De repente acordou, sobressaltado, caçando qualquer objeto que informasse as horas. E existiam vários, a começar pelo grande relógio vermelho redondo pendurado acima da mesa dos funcionários.
“Caraca! 4h13min... Era para eu dormir, mas não tanto...”
Levantou-se às carreiras, lavou o rosto, deu uns tapinhas intercalando as faces para despertar, penteou os cabelos. Ajeitou a camisa branca social, apertando o cinto que afrouxara ao deitar-se, logo em seguida. Quando resolveu descansar, não queria que nada o apertasse. Até mesmo a aliança tinha tirado do dedo e colocado no bolso da calça.
Ao entrar no vasto salão onde se produzia cosméticos, Vagner notou que a barulheira característica o avisava que ainda não estava em vigília de todo: um mundo explodia em sua cabeça naquela hora. “Eu daria tudo para estar em casa...”
Parecendo ansioso, lá vinha novamente o mesmo funcionário do seu primeiro  dia vespertino, aquele da dentista não marcada, meio bufando por ter corrido. Havia largado a máquina de etiquetar, para comunicar ao supervisor:
   Foi  até  bom  o senhor aparecer.    Tem uma moça aí que veio estagiar na empresa. Ela queria falar só com o senhor.
  Estagiar? No que ela está se formando?
  Em Administração de Empresas. Disse ela que escolheu essa fábrica porque fica perto de casa. Daqui a pouco vai estar de volta...
Encolhendo os ombros, Vagner só balbuciou:
  ‘Tá bem. Conversamos quando retornar... Obrigado!
O rapaz deu um sorriso, e voltou ao serviço. Naquele momento, o supervisor teve um estalo de simpatia por ele. Percebeu que o funcionário era do tipo que gostava de boa vida na empresa, mas que também fazia o gênero colaborador. Um cara que joga a letra para ver se forma palavra, apenas isso...
“Agora  essa...     Estagiária! Logo hoje que eu não estou legal, com a cara amassada... Se ela fizer anotações falando mal da empresa? Merda... Logo hoje!...”
Não demorou muito para entrar uma moça perto dos 30 anos, parecendo bem objetiva ao encaminhar-se até o supervisor:
  É você o Vagner?
Ele estava virado de lado, num esmero de elegância e limpeza, com o rosto demonstrando maior atividade; o ar sonolento fugira há meia hora.
Com uma prancheta providencial para vender imagem de líder sério, respondeu:
  Sou eu mesmo! Com quem eu falo?
   Meu nome é Monalisa, e tenho interesse em estagiar aqui. Estou me formando, faltam só dois períodos. Moro perto...
    Monalisa... Você não fugiu do quadro não, né? – pilheriou ele, com delicadeza. Mesmo assim, achou que ultrapassara os limites: – Ah, me desculpe a brincadeira. É que é irresistível...
Ela sorriu. Sorriu abrindo dimensões reprováveis em um certo coração. Sorriso inebriante. Sorriso...
   Todo mundo brinca com o meu nome, fique tranquilo! Na verdade, quando meus pais o escolheram, já fizeram a propósito. Foi um jeito bem legal para ninguém esquecer dele...
Ele sorriu timidamente, grudando com o olhar, na boca do sorriso fascinante. Voltando ao profissionalismo, perguntou solenemente:
  Mas, Monalisa, como posso ajudá-la?
  Eu preciso passar, ao menos um mês, 3 vezes por semana, em uma empresa, para saber como é a rotina de gerenciamento. Saber como lidar com os  funcionários, como preencher fichas, estar a par dos problemas e soluções, e tudo o mais. Sentir o clima de uma empresa, sabe como é?
  Sei. Bem, você pode vir. Mas eu vou poder assinar os papéis de estágio?
Acho melhor falar com o gerente...
  Não precisa. É qualquer pessoa da empresa que seja chefe do seu setor. Você não é o responsável pela supervisão? Sua carteira não é assinada como supervisor?
  Sim! – disparou com avidez.
             –  Então, sem problemas. Como eu te disse, meu curso só quer que eu  esteja  no clima de trabalho na minha área, para quando eu tiver a minha própria empresa. Apesar de eu já ter uma, bem pequena, e experiência também, eles querem que alguém assine por isso...
   Ótimo! – falou Vagner, animado. – É só agendar direitinho, os dias e os horários, que eu te receberei com o maior prazer!
  Posso começar agora?
O supervisor engasgou-se, mas de maneira contornável. Temia que a moça percebesse alguma irregularidade.
  Pode, sim! – já recomposto – Fique à vontade!
Monalisa correu os olhos em tudo, estranhando ter conseguido manter uma conversa, mesmo com o vozerio ensurdecedor.
“Nasci para isso! Só pode ser...”, riu consigo mesma.
Por sua vez, Vagner utilizou-se de sua prancheta para se “esconder”. Estava atônito, mas não podia demonstrar. Fingiu fazer anotações inadiáveis, correndo de um lado ao outro, passando coordenadas, franzindo as sobrancelhas, vendendo imagem de concentração.
No fim do expediente, Monalisa deu um tchau, sumindo-se com a tranquilidade de quem mora muito perto, que chegaria na hora adequada para tomar um banho, jantar e rumar-se para a faculdade.
Mais do que imaginava, a estagiária ficou nos pensamentos de Vagner, por tempo bem mais além do aceitável.
Ela voltaria na segunda, às 16h., cumprindo com a meta das 3 vezes semanais, sempre no mesmo horário.
Vagner passou o fim de semana inteiro afoito pelo novo encontro. “Só estou curioso. Eu nunca tive estagiários...”, desculpou-se.
Às segundas, quartas e sextas Vagner retirava a aliança. Ao contrário de todas as outras mulheres - para as quais fazia questão de exibi-la-, para Monalisa optava em estar “descompromissado”, dando pinceladas de sua vida, como falar da filha de onze anos, sem sugerir conexão marital com ninguém; dava a impressão de que a menina era fruto de um relacionamento dentro de uma solteirice mais animada.
O sorriso, uma constante de Monalisa, bailava aberto e afável a cada comentário inteligente dele, que era um homem que parecia saber das coisas.
  Você já tem uma pequena empresa, não é mesmo?
Estavam conversando na hora do lanche rápido de quinze minutos.
  É, de roupas e bolsas. Mas nem pequena é. Podemos chamá-la de loja de quintal. A minha mãe que toma conta quando não estou.
  É uma pequena empresa, sim, por que não? Não esqueça que muita gente enriqueceu começando com micros negócios, envolvendo a família inteira. Todos cresceram juntos!
   Se você está falando, está falado!... – o tom de voz dela funcionou para Vagner como sensualidade. Monalisa estava paquerando o supervisor.
  Está na hora de voltarmos, né? – avisou Vagner.
  Ãhan. Bem na hora mesmo... – ela também pressentiu que aquele caminho estava mal trilhado. Era melhor ir com calma.
   Com o passar dos dias, Vagner se pegou usando as melhores calças, as melhores camisas - ele que não precisava usar uniforme - e infamemente, pedia à esposa para passar com afinco suas roupas, sobretudo nos dias da Monalisa na fábrica.
A mulher não estranhava porque pensava ser algo a ver com a vigilância sanitária, que averiguava todos os setores, desde o funcionamento correto de produção, até mesmo as vestes dos funcionários.
Vagner e Monalisa se encontravam no costumeiro refeitório, um tanto vazio na hora que iam. Sempre se sentavam de frente um para o outro, e Vagner carregava a prancheta consigo.
  Vou ficar mais dois meses aqui, Vagner. – informou a moça, bebericando o café extremamente quente. – Fui conferir com a minha professora, e ela disse que eu terei que cumprir com uma carga horária maior de estágio, para eu não ficar dependente depois. Achei meio chato, mas ainda bem que você é um cara super maneiro!
  Por mim, não me importo. O negócio é você cumprir direitinho para não dar rolo. Essas burocracias é que atrapalham...
Fez um discurso o mais profissional possível, para não transparecer contentamento.
  Agora você já sabe que vai ter que me aguentar por mais tempo...
Ao acabar de falar, Monalisa sorriu. Sorriso franco, entorpecedor, de alguma deusa existente ou inventada, não misterioso como a da Gioconda, a inspiradora de seu nome. Sorriso magnífico, inebriante. Existente ou inventada, ela era a deusa Sorriso Perfeito.
Logo, com um pouco mais de dias, Vagner descobriu-se apaixonado: “Não posso, sou casado...”
Ele era um homem correto. Tinha se definido assim por várias vezes.
Mas era algo novo que se abria em sua existência, e ele precisava estar ciente de tudo. Porque o julgavam sapiente e um cara correto, o suficiente para procurar soluções quando estas não estavam ao alcance. É assim que agem os homens verdadeiramente corretos.
Foi se aconselhar com o único irmão reconhecido por ele:
  Tenho uma coisa que quero desabafar contigo, e não é de hoje...
O filho do italiano assistia ao jogo de futebol na internet, de transmissão ao vivo, do campeonato europeu. Era brasileiro e se sentia assim, mas a Itália tinha um lugar poderoso em seu coração.
  Deixa só terminar esse lance, só esse, ‘tá? Se o Juventus tomar um gol agora, está fora do campeonato...
Dito e feito. Saiu o tal gol, e o Juventus, time favorito do irmão de Vagner, estava fora. Ficou praguejando uns minutos, para logo cumprir o que afirmara ao mano mais velho:
  Que bicho ‘tá pegando, rapá? Há muito tempo não te via assim...
  Uma parada meio sinistra... – riu de si mesmo Vagner, que não era dado a gírias, mas que perto do irmão, aflorava nele essa nuance no seu linguajar.
  Pode falar...
Vagner ajustou-se melhor no sofá, desafiado por um olhar profundo do irmão, o
único sem o meio. Foi logo no alvo de suas dúvidas:
  Seja sincero: você já traiu a sua mulher? O irmão era casado há cinco anos.
  Claro! – respondeu sem titubear – Por que? Você não?
A resposta pronta e imediata surpreendeu negativamente o irmão mais velho:
  Não... Nunca! Será que é tão óbvio assim um homem trair sua mulher?
  Faz parte da vida, cara, desde que o mundo é mundo... É natural! O irmão mais velho continuava surpreso:
  Mas você começou a trair quando? Foi logo depois que casou?
  No início, não; o casamento era novidade. Depois de um ano mais ou menos, aí eu comecei a conhecer umas minas, e começou a rolar... Não parei mais!
   Eu jurava que você amasse sua mulher... – comentou Vagner, totalmente abismado.
  E o que o amor tem a ver com isso? Meu amor por ela é inabalável, a mulher mais incrível que já conheci! Mas nada me impede de dar minhas voltinhas, né? – observou o rosto abalado que o fitava com ar de desespero - Por que você está me perguntando tudo isso?
   Por que, pela primeira vez, eu penso em trair. – interrompeu-se – Estou perdidamente apaixonado. Apaixonado de pedra!...
Resolveu contar toda a história ao irmão, que o ouvia atentamente, sem interrompê-lo uma só vez sequer. Era difícil ver Vagner sem controle, sobretudo em relação às coisas do coração.
  O que devo fazer? Estou apaixonado, apaixonado mesmo... Até mais: estou amando aquela garota! Muito, muito mesmo... – explicou Vagner, no término de sua retórica.
  Simples: – respondeu o irmão – fica com ela! Não precisa se separar de sua mulher. Fica com ela enquanto estiver legal, sacou? Vai levando em banho-maria... Só não deixa essa mina escapar. Depois, você vai se arrepender para o resto da vida...
  Isso não está certo! Sou um homem sério. Sempre fui fiel...
  Você pediu minha opinião, e estou te mandando uma real: fica com essa mina!
Se não, você nunca vai se perdoar, segue a minha dica!...
Quando Vagner nem se dava conta, o estágio de Monalisa chegava ao fim, mais ou menos no período que o supervisor da tarde estava para retornar.
  Hoje é o meu último dia, como você sabe. – Monalisa ressaltava a informação no final do expediente, roendo um biscoito amanteigado que trouxera de casa. Parecia insatisfeita, falando aquelas palavras quase que soprando por entre os dentes.
  Você se saiu muito bem! – elogiou comedidamente o supervisor – Reparei que você tem capacidade de liderança, e sabe contornar chateações com  os funcionários de maneira exemplar! Na área de avaliação, de um dos ofícios que  você me entregou, eu coloquei que você está inteiramente apta para administrar qualquer empresa.
  Obrigada! Você tem sido um amor!...
  Imagine! Você merece! É responsável, centrada, ágil, correta... “E tem sorriso de deusa, a deusa Sorriso Perfeito”, pensou ele, que abanou a ideia tão logo a formou. – Sua loja vai prosperar, você vai ver!
Não tinha muito o que dizer. Monalisa apenas sorriu e olhou fundo nos olhos do seu não mais responsável pelo setor que estagiara. Agora a sua frente estava ele, simplesmente Vagner, o homem que estava preenchendo seus sonhos de todas as noites.
Era preciso coragem. E ela teve. Ficou feliz por o nosso tempo ser outro, longe daqueles em que ela iria se calar no anonimato do sentimento solitário:
– Vamos sair qualquer dia? Sem compromisso, só para a gente conversar um pouco...
Vagner estava dignamente trajado. Tinha pedido à mulher para separar a camisa que mais gostava, verde, de botão, que cobria um tanto o cotovelo, e ele mesmo fora ao armário para procurar a calça branca, que casava magnificamente bem com a verde camisa. O tênis era um mocassim preto, que alguns definiam como sapatênis. Daquele modo, estava apresentado ao mundo, como as pessoas usualmente chamam de galã.
Vendo aquele sorriso, o sorriso da deusa Sorriso Perfeito, enxergando nos seus olhos um futuro que poderia ter, de motivação, de trocas de experiências, de aprender melhores formas de liderança e gerenciamento, na empresa e na vida, do quanto ele poderia ter a paz do reconhecimento da igual ao seu lado, um mundo de não-traições, porque a ela seria fiel por amor, não por ser correto, Vagner baqueou em sua ideologia da correção.
Talvez seu irmão estivesse certo, ao dizer que ele se arrependeria se não tentasse algo com Monalisa.
Talvez o correto fosse se entregar aos sentimentos porque eram de uma profunda limpeza em sua alma.
Talvez uma simples saída com uma mulher não se configurasse em erro.
Talvez trair a esposa – que não amava desde sempre; só casou-se com ela porque engravidou – não mudasse os critérios de correto, pressuposto na letra fria da lei conjugal.
Contudo, na ligação automática que os homens corretos fazem com o que a mente treinara por hábito, Vagner colocou a mão no bolso direito, e de lá tirou a aliança de ouro, uma aliança grossa, pesada, maciçamente opressiva para desavisadas que flertam com homens casados, sem saberem que eles são.
Ajeitou-a no dedo anular esquerdo, exibindo do mesmo modo que fazia sempre, ao perceber que havia uma mulher interessada em romance.
  Sou casado... Não posso!... Mas, boa sorte na sua loja! Monalisa esmoreceu o sorriso. Na hora. Para sempre. Para ele.
Saiu trôpega, feito bêbada, e lançou ao ar apenas um amarelo tchau. Estava magoada, indubitavelmente sentida. Monalisa se sentia traída.
“Tantas vezes a gente conversou... Por que ele não disse que era casado? Por que nunca usou aliança antes perto de mim? Por que esse miserável fez isso comigo?”
Vagner contava com setenta e oito anos, quando soube que Monalisa tinha ganhado mais um dos cobiçados prêmios de melhor empresária do ano.
Sua empresa de roupas e bolsas tinha progredido o suficiente para ela formar uma cadeia de lojas, no Brasil e até no exterior.
Estava em todas as mídias; era um exemplo de empreendedora honesta e ser humano solidário. Abraçava muitas causas nobres.
Era casada com um também empreendedor importante, e estava encaminhando a filha do meio para ser sua herdeira. Tinha dois netinhos, ainda crianças, que adorava.
Ele, Vagner, também tinha netos. Meninos bons e inteligentes. Só um era um pouco rebelde, mas nada que levasse a preocupações noturnas tiradoras de sono.
Estava aposentado da mesma empresa onde trabalhara por toda a vida. De supervisor, passou a gerente, e por ali, ficou.
Seu salário era o bastante para aguentar as contas do mês, e até trocar de carro de três em três anos.
Era uma vida boa. Normal. Correta.
Nunca mais esbarrara com Monalisa, em lugar algum, nem mesmo no bairro do endereço da fábrica, ela que morava ali perto. A ela, Vagner procurara – e por muito tempo ainda –, depois do seu último dia de estágio.
“Monalisa era correta. Ela não quis ficar comigo sabendo que eu era casado. Não insistiu, como muitas fazem. Ela era correta...”, se remoeu ainda por longos anos Vagner.
De toda a dor que o supervisor da fábrica onde estagiara Monalisa sentia, havia uma que nunca passava. Nunca, nunca, nunca passava.
Era a dor de uma não-resposta, o que a alma joga para baixo do tapete mental e retorna, porque a poeira do tempo é implacável com o que não se encaixa na razão.
Triste admitir que ele não sabia, por todo o tempo que transcorreu em sua trajetória de vida desde que conhecera Monalisa, que ele não sabia, não sabia, não sabia mesmo – e isso doía feito ferida exposta – a quem, nessa história toda, ele tinha sido realmente fiel...




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