PARA QUEM AMA GATOS

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quinta-feira, 15 de agosto de 2019

Inveja Inexplicável


Conto de hoje: Inveja Inexplicável.
Da antologia IMPREVISTOS DE UMA VIAGEM COTIDIANA, de Mary Difatto.
Toda quinta-feira, uma nova publicação.
Bons "imprevistos de viagem"!





INVEJA INEXPLICÁVEL



O vizinho de duas casas após a dele passou, com passos certeiros, fazendo um sujeito de nome Ademar prestar bem a atenção em seus gestos.
Leandro era um cara de porte atlético, não alto, mas de estatura mediana convincente, semi-calvo, andar posudo, sorriso franco, olhos vigilantes, vivido e bem quisto, no auge de seus quarenta e poucos anos. Não havia quem não gostasse dele, considerado um exemplo do que é ser um bom vizinho.
Trabalhara como paraquedista do Exército, chegando a oficial, e nos dois últimos anos, infelizmente, por deslocamento da clavícula esquerda. Num dos raros saltos mal dados, fora afastado para tratamento, logo em seguida, sendo aposentado, apesar de sua imploração para que o mantivessem na infantaria. Sua aposentadoria acontecera, não tendo ele motivo algum para reclamar: o dinheiro que recebia mensalmente era bem adequado ao seu mérito.
Estava separado da esposa há dois anos, não tendo filhos. Com a atual namorada, uma moça doze anos mais nova que ele, pretendia se casar novamente e ter, pelo menos, um bebezinho para alegrar a casa. Leandro, por aquele tempo, não morava com a namorada, e tinha a companhia apenas de um casal de cães e um gato, todos castrados. A moça cansava de rir porque ele conversava com os animais como se fossem crianças.
Talvez por ter sido do Exército, ele era bastante disciplinado. Acordava muito cedo, comia alimentos sem gordura, seguia uma dieta balanceada. Fazia exercício todos os dias na praça em seu próprio bairro, usando os dez aparelhos não quebrados do espaço (dois deles, os vândalos trataram de deteriorar). Corria o campo todo, ingerindo muita bebida isotônica. Sua geladeira andava repleta delas, das melhores marcas.
Um dos seus “luxos”, era ensinar truques aos seus animais de estimação.
Cada um fazia muitas “apresentações” interessantes, como o seu cão macho,um labrador misturado com SRD, que recebia as visitas com um meneio de cabeça como cumprimento. A cadela, uma chihuahua marrom e branca, dançava na ponta das patas traseiras, com uma sainha rosa de bailarina. E o gato, um “frajolinha” de classe, embora sendo um SRD, que parecia estar sempre de fraque e luvas  brancas, já dava a patinha direita para qualquer um que o pedisse. Era só estender  a mão. O felino sabia também andar de skate feito especialmente para ele, com um capacete azul que era uma graça. Na verdade, todos os animais conheciam vários truques que, pacientemente, Leandro os ensinara.
No entanto, Leandro não sabia da existência de alguém que o invejasse. Ademar era essa pessoa, que queria tudo o que ele possuía.
Ter conquistas materiais eram fruto de trabalho, iniciado na adolescência, ao se preparar da maneira correta e objetiva, estudando e perdendo festas de fim de semana. Suas vitórias eram consequência de uma luta elaborada desde sempre.  Era assim que Leandro raciocinava.
Leandro encarava as imitações de Ademar como simples “admiração”.
É natural querermos ser parecidos com pessoas, ao reconhecermos nelas, atributos que julguemos superiores aos nossos. O próprio ex-paraquedista já copiou um corte de cabelo de algum colega – quando ainda tinha cabelos em abundância – e nem por isso se considerou “invejoso”.
Uma ou outra vez que alguém imita algo de uma pessoa, decididamente, Leandro não encarava como algo ruim. Era normal, era humano.
Jamais o ex-PQD iria considerar um ainda rapaz – mal passava dos 30 anos – o Ademar, um cara bonito – até ele como heterossexual tinha que admitir –, de família bem de vida, que tinha uma bela esposa, uma casa espaçosa e elegante, um bom carro, celulares modernos e caros, vários amigos, um rapaz que trabalhava com o pai e saía na hora que queria, fosse ter inveja dele, um sujeito bem situado, mas que tudo que chegara às mãos fora na base do imenso sacrifício, de acordar cedo, de enfrentar transportes lotados, de tomar o desjejum com pães dormidos, de não ter dinheiro no bolso para comprar uma caneta, todo o “pacote” incluído dos que os abastados julgam clichê de pobre para se fazer de “vítima”. Mal sabem eles que aquilo por que passara Leandro, corresponde ao cotidiano da maioria da classe trabalhadora de nosso País. A mais pura realidade, tão real, que chega ao deboche de parecer fantasia para os desinformados.
Os dois vizinhos mantinham uma relação de amistosidade apenas; nada de discussões, mas nada de intimidade.
Logo quando Leandro se mudara para aquele bairro, em uns poucos dias, pensava até que Ademar fosse homossexual, de tanto que o rapaz o observava. Depois passou a achar que tinha problema mental. Até fechar o assunto classificando-o como mero admirador, através dos elogios que o rapaz fazia aos objetos adquiridos pelo recém-chegado, como lanternas, chaveiros ou bermudas simples, mas práticas. No entender do ex-paraquedista, Ademar jamais teria inveja de artigos que ele próprio poderia comprar bem melhores. Só de fato a admiração pelo bom gosto do outro, fazia sentido em seus comentários naturais.
Mesmo sendo bem óbvia a cobiça de Ademar pelo o que não era seu, Leandro ficou renitente para mudar de opinião enquanto pôde.
Ainda que fosse para lá de estranho que, mostrada uma carteira nova para o vizinho, ele corresse na loja para adquirir uma igual; que aparecesse com uma bicicleta usada, mas boa para fazer compras em bairros mais longínquos, o rapaz arrumasse uma idêntica, com o mesmo pequeno defeito no bagageiro; que dissesse que encomendara uma pizza de atum e presunto, fosse o vizinho, no mesmo dia, encomendar o mesmo sabor da massa, de igual tamanho, na mesma pizzaria, Leandro era da tese de que as pessoas não podem ser julgadas pelo o que achamos que elas sejam, e sim, pelo o que elas realmente são...
Quando o ex-PQD começou a enfeitar o muro de sua residência com ladrilhos diversos em todos os sentidos – cores, tamanhos, formas, desenhos, idade – ele havia copiado, descaradamente, a Escadaria Selarón, a famosa que dava acesso da Lapa à Santa Teresa. Mas era admiração, não inveja.
Ademar fez o mesmo.
Não passou nem uma semana, e lá estava ele, assim como Leandro, assentando os ladrilhos na parede, de maneira idêntica, até cometendo os mesmos erros, de deixar vãos largos demais entre uma peça e outra.
Ali, o ex-paraquedista começou a notar algo de errado. Tinha que haver uma explicação que lhe escapava à mente. Não quis, no entanto, ater-se a essas bobagens de vizinho. Decidiu continuar no seu ritmo, e Ademar que tomasse o tal do “chá de semancol”.
O paraquedista aposentado precocemente confirmou a esquisitice do vizinho – estranheza essa que teve que aceitar como sendo o que chamamos de inveja patológica –, ao chegar aos seus ouvidos, que Ademar arrumara um pastor belga, lindo, de manto negro, e a ele estava ensinando truques quais os de Leandro com seus animais domésticos.
Tudo porque os bichos de estimação do vizinho alvo de inveja viraram “atração” entre pessoas das redondezas, que adoravam, uma vez por semana, fazer-lhe uma visita “como quem não queria nada”. Leandro já conhecia a manha daquelas pessoas, e convidava para entrarem no quintal para assistirem ao espetáculo. Vinham muitas crianças, mas os adultos formavam um bom “fã-clube” também. Geralmente ocorria na sexta-feira à tarde, mas ele não se incomodava. Passou a marcar esse como o “dia de visitação”. Não havia exploração dos bichinhos; não eram forçados de jeito algum, e eram bem cuidados. Quando não queriam fazer os tais truques, o tutor os levava para dentro de casa, e que ninguém insistisse porque veriam a face da ira do ex-militar. Seus animais eram um de seus bens mais preciosos.
Parecia que ia bem o adestramento de Ademar com o seu cão; ele estava aprendendo realmente alguns “salamaleques”.
O que ativou o botão da preocupação em Leandro é saber que o vizinho não gostava de animais! Chegava a desdenhar quando o ex-paraquedista passava com o labrador e a chihuahua para passearem nas redondezas. E ria disfarçada, mas ironicamente, ao ver o “frajolinha” se equilibrando no skate, quando o ex-militar  trazia seu gato para a frente do portão, sob sua total vigilância.
Como um cara que não curtia os animais poderia arrumar um cão e adestrá-lo? Se o cachorro deixasse de ter graça, o que ele faria depois? Jogaria o pobre cão na rua, para ajudar na triste estatística de mais abandono de animais sem perspectiva de adoção?
Decretado mentalmente: “ADEMAR É INVEJOSO!”
Duraram pouco as façanhas de Ademar com seu cachorro, como previra Leandro. Não suportou as intempéries que a criação de qualquer ser vivo requer. Como não gostasse de animais, os problemas se fizeram maiores. Livrou-se dele, doando a uma senhora que abrigava muitos animais, e que tinha situação financeira para arcar com os custos. Sorte do cachorro que, mesmo tendo que dividir o espaço com outros, recebia comida, cuidados médicos, carinho e atenção, algo que não via no seu “lar” anterior.
A máxima da inveja ainda estava por vir, quando o episódio do cão há muito havia passado. Leandro jamais esperaria que a famosa “Lei de Murphy” se cumpriria na trajetória de vida de Ademar e seu “olho-grande”.
Uma vez ao ano, o ex-paraquedista cumpria com sua “hibernação” particular, que se constituía em ir acampar na Praia do Sono, em Paraty, RJ. Acreditava que voltava sempre uma pessoa melhor, quando passava aqueles três dias de retiro, tendo que cozinhar sua comida, lavar roupa, e tudo o mais que compete à vida em civilização, estando ele totalmente só.
Ia preparado como se nunca mais fosse ter contato com a cidade novamente. Por isso, escolhia o período de inverno, que quase ninguém queria aventurar-se em um lugar ermo, ainda mais solitário. Quando ele pensava em isolamento, era um afastamento social para valer.
Deixava todo o seu procedimento por escrito com a namorada, os pontos que ele poderia ser encontrado caso acontecesse “o pior”, e ele não retornasse nos cinco dias previstos – um dia para ir; um dia para voltar –, ração com duração de seis meses para ser dada aos seus animais no período de ausência. A namorada ficava meio confusa com tanta precaução, mas entendia a retórica: “Vai que me acontece o pior?”, insistia ele.
Na mochila esverdeada, assemelhando-se ao seu uniforme do Exército da Brigada dos PQDs, levava o material de sobrevivência: comidas em lata, abridor de lata, roupas largas, tênis de cano alto, casacos, jaquetas, colete salva-vidas, canivete, repelente, copos e sacolas de papel (para ser facilmente dissolvido na natureza), lanternas com pilhas que só colocava quando chegava lá, colchonete, isqueiro, lamparina e querosene. Na bolsa de viagem, carregava a barraca. Nada de celular ou algo que o lembrasse remotamente de comunicação.
Ia-se ele tão liberto, que ninguém ousava dizer que a sua jornada poderia ser perigosa. Ele conhecia todas as técnicas, e fazia isso todos os anos, há mais de quinze.
Naquele ano, aconteceu o mesmo que nos outros: quando retornara, a sensação de melhoria enquanto ser humano estava nele, impregnada como a maresia em sua roupa de aventureiro.
Os animais o farejaram longamente, com ar de saudade, enquanto a namorada separava roupas para ele tomar um banho acolhedor. Era bom estar de volta, dando mais valor ainda às coisas que mereciam valor.
Lá se foi, uma semana depois, o invejoso Ademar para a mesma Praia do Sono, levando seus apetrechos de acampamento, iguais aos de Leandro, descobrindo onde o ex-paraquedista tinha comprado todo o material necessário.
Sua motivação não era nada sublime; não queria descobrir-se um grande ser
humano, nem era assim tão apaixonado pela natureza.
        Ao chegar, sentira que aquele fim de semana não seria favorável: para começar, o mar estava de ressaca.
Não armou a barraca porque não sabia; mal e mal comeu as salsichas de uma das latinhas; não dormiu direito porque se atrapalhou ao usar o repelente, tendo alguns mosquitos a importuná-lo (também por causa do frio, já que ficou exposto à friagem noturna); sentiu tontura pois seu organismo estava acostumado ao horário certo de almoço e ele ingerira pouco sal. Estava se sentindo abandonado, perdido, e nem para levar o celular...
Entrando no mar, tinha consciência do que estava fazendo, ainda que ele acreditasse que poderia se dar bem. “Se Leandro conseguiu, eu também consigo! ”
Não se considerava invejoso.
Se alguém o forçasse a admitir alguma falha de caráter, se definiria como
arrogante.
Não conseguia conceber, em sua mente pequena, que alguém como Leandro pudesse ser tão capaz. Viera da pobreza; como poderia estar morando num dos bairros mais nobres da cidade? Ademar conhecera pessoas pobres que obtiveram vitória. Vitória financeira, mas isso não era tudo.
Na visão de Ademar, ter arrogância era característica de pessoa de  posse; inveja, coisa de gente miserável, que não tem a fartura de uma grande mesa no jantar.
Mas ele não levara em consideração que seu sentimento real era a inveja.
Inveja... Não das posses materiais do outro, já que tinha em menor quantidade que ele próprio. Mas a posse no sentido de possibilidade.
Era a força, o carisma, a perseverança que Leandro trazia no olhar e em sua vida. O ex-paraquedista fazia acreditar que era possível. Ele ajeitava a situação, era o cara do bairro.
Tudo isso deixava Ademar transtornado. “Um cara como Leandro não poderia nem estar aqui! ” Mas ele estava.
Ele não sabia precisar quando tudo começou, mas a falsa arrogância o enganara: fora o bichinho da inveja que crescera dentro dele, e Ademar agora estava colhendo os seus maus frutos...
Encontrava mais e mais a profundeza daquelas águas, com a correnteza que o impelia a prosseguir.
Não se importou nada quando os pulmões começaram a ser preenchidos do líquido esverdeado misturado com as folhas do local.
Antes de se despedir completamente de nosso mundo, Ademar pensou, ele que não sabia nadar muito bem: “Que vacilo o meu! Comprei tudo igual ao dele. Menos o colete...”



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