Conto de hoje: Soninha.
Do livro de contos VIDA, VEZ... VOZ DE GATO!, de Mary Difatto.
Toda quinta-feira, uma nova publicação.
A história de um gato contada por ele mesmo.
Soninha
O meu começo de vida foi complicado: de uma ninhada de 5 gatinhos, só eu sobrevivi.
É porque minha mamãe gata, que não possuía casa, teve os bebês no mato, e por isso, não pôde nos proteger direito, quando caiu uma chuvarada, mais ou menos, uns trinta dias depois que nascemos.
Aquela tempestade nos atingiu de tal maneira, que a maioria de nós pegou pneumonia. Daí, eu só aguentei porque era muito gulosa: mamava mais que os outros. Fiquei mais forte, com mais proteínas.
Mamãe, coitadinha, saía para caçar comida todos os dias, para ela própria sobreviver. Era magrinha que só!
Permanecia eu quietinha, esperando o retorno dela, eu que começava a andar com certa firmeza, já conseguindo identificar quando havia uma invasão de inimigos em nosso território (corria mato adentro, só aparecendo quando mamãe chamava). Era uma alegria quando voltava! Mamava tanto, e me aconchegava na barriga dela, até o sono chegar...
Certo dia, quando mamãe saiu em busca de alimento, voltou acompanhada de uma criatura até então esquisita para mim: um ser humano!
Mamãe não brigou com essa criatura, quando ela sorriu e tentou me pôr no colo.
Não conseguiu porque eu não deixei; corri feito louca! Sei lá quem era aquele ser estranho? Na dúvida, preferi sumir...
Mas aquela criatura não desistiu de mim. Ia todos os dias lá tentar fazer amizade comigo, permanecendo nesse jogo durante uma semana.
Até que não resisti.
A moça me ganhou com uma comida gostosa, que descobri depois, se tratar de sardinha. Foi a primeira vez que ronronei para uma pessoa!
Logo, eu fui morar na casa dela, levada juntamente com mamãe. Ganhei o nome de Soninha, por dormir quase o dia inteiro. Admito que eu sempre fui bastante gulosa e preguiçosa!...
Era muito comum - passei a conviver com outros seres humanos - alguém perguntar por mim. Mamãe humana logo dizia:
- Soninha? Ah, aquela ali está dormindo, pra variar... - rindo, imaginando os lugares mais absurdos que eu escolhia para meu descanso da beleza.
Uma coisa que sempre me chateou um pouco desde o começo, mas não a ponto de eu ficar zangada, é que ninguém fala as minhas cores direito. Todo mundo acha que sou preta e branca!
Na verdade, sou cinza e branca, de olhos verdes. Sou muito elogiada por ter um pelo bem macio.
Havia uma garotinha também, filha da mamãe humana, que me adorava, me punha no colo e me beijava tanto!... No início, eu não gostava muito, mas com o tempo, passei a gostar daquele paparico.
Lá eu tinha vida de rainha!
Dormia dentro de casa onde quisesse, via televisão com mamãe humana, recebia carinho de todo mundo, mamava na mamãe gata e aprendi a comer ração. Tudo era felicidade!
Uma das minhas maiores tristezas, no entanto, foi quando mamãe gata parou de me dar mamar e bater em mim. Fiquei até deprimida...
Numa conversa de humanos, ouvi a moça que me adotou, comentar com alguém:
- É porque Soninha está com uns três meses. O leite da mãezinha dela deve ter secado.
Então, compreendi que a nossa relação de mãe e filha, havia terminado, apesar de vê-la todos os dias comendo a ração no quintal, sem poder me aproximar.
Apesar de muito bem tratada igual a mim, minha mamãe gata não parava em casa.
Naturalmente, sentia falta das caças, de ter que lutar pela sobrevivência, de viver aventuras mil.
Estava acostumada com a rua, em ser livre!
Até que um dia, não voltou mais. Ninguém sabe o que aconteceu...
O tempo foi passando e me tornei uma gatona!
Engordei muito, mas não fiquei obesa. Meu pelo cresceu mais espesso e macio ainda! As pessoas costumavam vir direto em minha direção para me pegar no colo. Apesar de eu não arranhar ninguém, não gostava desse agarramento de estranhos.
Corria tudo muito bem, eu a cada dia estava mais acostumada com minha vida com os humanos.
Sendo eu a rainha, era obedecida em todos os meus desejos, como comer sempre que eu pedia (a garotinha jogava pedaços de pão para mim escondido, para mamãe humana não reclamar).
Porém, aconteceu uma chatice, uma coisa lá chamada de campanha de vacinação de animais domésticos na nossa cidade.
Todo mundo avisava minha mãe que ela deveria me proteger, principalmente um senhor vendedor de artigos do lar:
- Olha, Soninha nunca foi vacinada! Apesar de não sair do quintal, corre risco dela pegar raiva de algum animal infectado!...
Eu tinha cerca de dois anos, e mamãe nunca viu necessidade de me levar. Mas de tanto que a amedrontaram, resolveu atender o aviso.
Não gostei nada, nadinha, de receber um laço no pescoço, com uma corrente agarrada à mão de minha mamãe. Achei estranho porque o máximo que ela punha em mim, era uma mantinha por cima do meu corpo, quando estava muito frio.
A contragosto, eu fui.
Minha intuição dizia que aquilo não seria bom para mim.
De longe, avistei muita gente, e uns barulhos irritantes, que eu já sabia serem dos cachorros, aqueles seres que eu conhecia só de vista.
Fiquei muito assustada!
Ao aproximar, não aguentei tantos latidos e miados; eu enlouqueci naquela hora.
Saltei do colo da mamãe e desapareci.
Tive pena de mamãe, que gritava:
- Soninha, Soninha! Volta, meu amor!
Mas eu não podia voltar. Era muito barulho, mais do que poderia suportar...
Fugi para o mato. Havia muitos terrenos baldios naquela época, o que facilitou o meu sumiço.
Durante meses permaneci por lá, comendo o que surgia, o que caçava.
De vez em quando ouvia a voz da mamãe me chamando, e tinha vontade de atendê-la.
Entretanto, o pavor dela me levar para aquele barulhão de novo, não me deixava retornar.
Sentia falta da boa vida que tinha. Sentia falta da mamãe e da garotinha, que eram tão maravilhosas para mim.
Mas eu ainda estava traumatizada...
Acabei arrumando alguns namorados, e com eles tive filhotes. Estava me sentindo sozinha e frágil.
Quando os meus bebês estavam com uns quinze dias, resolvi aparecer para mamãe, ela que sempre estava na área, na esperança de me encontrar.
- Soninha, ah, Soninha... - ela me beijou tanto, me pondo no colo, como se nunca tivéssemos nos separado.
Ronronei alto; adorei quando mãezinha me tomou nos seus braços.
Ela já ia me carregando para casa, quando eu comecei a me balançar, para que me soltasse. Assim sendo, a direcionei onde estavam os meus filhinhos.
Ao vê-los, mamãe humana tentou levá-los junto, mas eu não quis acompanhá-la. Acho que compreendeu que se levasse meus nenéns para o barulho, eu iria abandoná-los.
Então, mamãe me deixou ali mesmo com eles, passando a me visitar.
Fez uma casa de gatos bem protegida, levando comida e água, dando muito carinho e amor. A filhinha dela também ia lá, me paparicando, como sempre.
Eles cresceram um bocado, meu leite secou, e mamãe doou os bebês.
Tive uma outra ninhada logo depois dessa primeira, e da mesma forma ela agiu, doando os bichinhos quando estavam crescidos.
Dali, ela resolveu me castrar. Não tive mais filhos.
Porém, não quis ficar em casa mesmo assim. Logo recuperada da cirurgia e fortalecida, me mandei para o local onde tive os bebês.
Depois disso, minha mãezinha me levou várias vezes para o seu lar, mas eu fugia sempre.
Uma época ela chegou a me prender, porém, caí numa tristeza tão profunda, que resolveu me soltar, só para me ver feliz novamente.
Hoje estou bem madura. Não idosa, mas sem aquela energia de antes.
Por esse motivo, não tenho vontade de caçar, mesmo porque já perdi alguns dentes.
Todos os dias, mamãe vem me ver. Traz de tudo que mais gosto, inclusive sardinha frita, que eu adoro. A garotinha está quase uma moça feita. Continua tão carinhosa quanto a mãezinha.
Agora, terrenos baldios são raros por aqui.
Mas por um golpe de sorte, onde fica a minha casinha, não foi ainda vendido, nem vem ninguém para sequer dar uma olhada.
De vez em quando, sinto vontade de voltar para a casa onde cresci cercada de tanto amor.
Só que me acostumei com a vida na rua, essa liberdade tão prezada por nós, gatos.
Agora entendo a minha mamãe gata. O desafio de sobreviver todos os dias, correndo certos riscos, nos fascina.
Gatos não são compreendidos com facilidade. É preciso muita dedicação, o que mamãe tem de sobra.
Já me prometi: quando estiver bem idosa, vou ficar com a minha mãezinha humana.
Devo confessar que a liberdade me faz bem, mas aquela vida mansa que eu tinha, também não é nada ruim...
(Imagem:
https://www.facebook.com/MaryDifattoOficial)
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