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quinta-feira, 29 de agosto de 2019

Imprevistos de Uma Viagem Cotidiana (conto)





Conto de hoje: Imprevistos de Uma Viagem Cotidiana
Da antologia homônima IMPREVISTOS DE UMA VIAGEM COTIDIANA, de Mary Difatto.
Última publicação dessa antologia.
Bons "imprevistos de viagem"!



IMPREVISTOS DE UMA VIAGEM COTIDIANA



O trajeto era o mesmo. O horário e a linha de ônibus também, de todos os dias úteis da semana.
Porém, algo ali soava incomum àquela panfletista de uma instituição voltada para o meio ambiente.
Sônia levava de uma, a uma hora e meia, para chegar ao Centro da cidade.
Estando lá, recebia instruções para a entrega das filipetas, qual o bairro, rua, até que horas ficaria, qual equipe iria junto, quais pessoas naquele lugar seriam ideais a serem abordadas. Tudo para conquistar ao máximo a atenção do público-alvo. Pertencia a uma empresa de renome, que queria “limpar” a má fama de contraventora, apoiando causas nobres.
A singularidade do dia de Sônia começou, ao sentar-se no quinto banco à direita, junto à janela (por estar na maioria das vezes cheio, ela tinha que se contentar quase sempre com o assento do corredor).
Era bom sentir o ventinho vindo lá de fora! (Infelizmente, seu ônibus pertencia ao infeliz clube dos “sem ar-condicionado”, portanto, sentar-se à janela era um luxo!...)
Tirou o seu fone de ouvido, daqueles que cobrem toda a orelha, evitando problemas auditivos que com o tempo pode ser provocado pelos decibéis a mais  que os fones comuns costumam ocasionar.
Comprou um de cor única, totalmente cinza, para não chamar o olhar cobiçoso de ninguém. Tomar a atenção, só na panfletagem, onde Sônia mostrava-se intensamente despachada.
Seu celular era simples, da mesma cor do fone, sem aplicativos, sem alta tecnologia; servia só para falar e ouvir rádio FM. Não havia uma estação a qual ela fosse fiel. Porque nenhuma tocava o que ela gostaria de ouvir, isto é, “tudo”. Dentro da música, ela era verdadeiramente eclética. Do pagode à música clássica, os ouvidos da panfletista aceitavam com gosto. Quando enjoava de um estilo musical, passava para outra estação, e tomava essa atitude invariavelmente, na já acostumada rotina de ida e volta do trabalho.
Estava ligada a um som vibrante do rádio, que naquela área onde o ônibus estava, dava um pequeno
chiado pela falta de frequência completa, quando um rapaz se sentou ao seu lado, pedindo licença
antes.
Uns 10 minutos de viagem apenas havia transcorrido para Sônia, e ela contava com a distração que vinha do seu rádio, tão somente isso.
No entanto, o tal rapaz demonstrava uma tristeza tão profunda, que a moça passou a prestar a atenção em seus atos, para captar-lhe os reais sentimentos.
Logo, ele próprio puxou conversa:
   A senhora sabe como está o trânsito hoje, se tem engarrafamento?
Ela era ainda bem jovem, não passava dos trinta; o “senhora” a irritou internamente:
         Sei dizer, não... – respondeu de mau grado – Geralmente tem, mas hoje mesmo, não sei... Com essas reformas que estão acontecendo...
Voltou a ouvir a música que tocava, mas já tinha virado outra.
Uma coisa deu nela de observar detalhadamente o rosto daquele notoriamente jovem – ele, sem sombra de dúvida, não passava dos vinte –, sentindo que a história do trânsito era só desculpa. Na verdade, só queria conversar com alguém. Pressentindo essa situação, o tratamento “senhora” perdeu a conotação de envelhecimento. Ele era apenas um cara educado.
Retirou o fone de ouvido. Colocou na cabeça que iria descobrir o “mistério” do rapaz:
   Você não está atrasado para o trabalho, está? – disse ela, com um sorriso modesto.
Ele pareceu sobressaltar-se com o interesse da estranha ao seu lado, mas gostou que alguém o visse:
  Não, não... – o cenho ficou mais fechado. Sônia podia jurar que ele estava à beira das lágrimas.
   Desculpe a minha intromissão! – disse ela, sinceramente arrependida do comentário.
  Que isso? Você não está se intrometendo, não!...
“Agora descolei um ‘você’!”, se divertiu ela, no pensamento.
  Trabalho hoje em dia está complicado... – falou a moça por falar, não tinha objetivo algum além de só prosseguir a conversa – Mas a gente tem que ter fé, não é mesmo? Tudo há de dar certo!...
Neste exato momento, o rapaz revelou:
  Pois acabei de perder o meu hoje...
Sônia levou a mão a boca, automaticamente:
  Ai, me desculpe, desculpe mesmo... Puxa vida!...
  Sem problema! Eu estou bem...
Dali ele contou toda a história, que a empresa estava fazendo corte de pessoal, contenção de despesa por causa da crise. Ele, exatamente por ser muito jovem, e não ser ainda casado, foi um dos muitos escolhidos para a demissão. Era estoquista de um supermercado, mas já contava com bastante experiência, apesar dos seus poucos 19. Não era casado, mas tinha uma filhinha de dez meses com a sua namorada, com a qual pretendia se unir em breve.
  Não fique assim... Você é muito novo! Com essa experiência que já tem, há de aparecer um emprego! E bem melhor, você vai ver!
Ela não poderia afirmar, mas o rapaz demonstrou bem menos angústia.
  Talvez você esteja certa... É que essa notícia me pegou de surpresa!...
O recém-desempregado olhou de um lado ao outro pelos vidros das janelas para se situar. Percebeu que seu ponto para saltar se aproximava:
  Vai descer, não é isso?
  É, sim...
  Qualquer hora você vai pegar esse ônibus, e me dirá que está de emprego novo! – ela sorriu – Acredite!
O sorriso ainda sem cor, mas os olhos dele traziam um novo brilho:
   Foi um prazer te conhecer! – ele apertou a mão de Sônia com respeito – Obrigado pela força! Muito obrigado mesmo!
Saltou e sumiu-se pelas ruas. Onde morava, uma incógnita. A esperança, no entanto, começara a brotar nele na simples conversa com a panfletista. Isso era claro.
Ele só queria desabafar. Três ou quatro minutos foram suficientes...
Depois disso, Sônia recostou-se melhor no assento, com a cabeça em ligar o rádio.
Porém, houve uma interrupção em seu intento, quando uma moça com um garotinho no colo, acomodou-se, suada e ofegante, no assento vazio ao seu lado.
A panfletista pensou em perguntar do que se tratava, entretanto, trazia um receio de que a mulher com o bebê lhe desse um “fora”. Há pessoas que precisam de ajuda, mas não querem parecer que precisam.
  Ai, não estou bem... – declarou a mulher, parecendo ser um esforço a simples fala.
Com esse comentário, Sônia sentiu-se na liberdade para a pergunta clássica:
  O que que você tem?
  Estou com medo de ficar enjoada!
  Medo de enjoo? Mas você já está enjoada, não?
  Não... Mas tenho medo de ficar!
Sônia vira muitas pessoas terem ânsia de vômito, e até mesmo jogarem fora o conteúdo de seus estômagos em veículos, sobretudo em viagens longas. Muitos organismos, por falta de costume de viajar, têm sensibilidade ao balanço de transporte público, seja ônibus, trem ou principalmente barca. Nada, porém, comparado àquilo, uma pessoa passar mal só em imaginar que pode passar mal...
  Você já ficou enjoada antes em ônibus?
  Algumas vezes...
  E como foi que você lidou com a situação? Pediu ajuda... Como foi?
  Eu saltei antes do ponto...
O garotinho de um ano e pouco, estava quieto, mordendo sua chupeta. De vez em quando esticava seus espertos olhinhos verdes, para mirar a mãe. Continuava a morder a chupeta, como se quisesse manter a calma.
  Você se consultou com algum médico?
  Não... Quando a viagem é demorada, tomo um remédio antes. Me dá um sono danado, mas não passo mal. Hoje eu não podia dormir! Estou levando o menino... – disse a moça, visivelmente preocupada com sua própria situação.
Sem saber o que fazer, mas com vontade de ajudar aquela mãe, algo levou Sônia a perguntar mais sobre o assunto:
  Vem cá... Toda vez que você teve esse problema, estava sozinha?
  Estava...
  Tinha comido antes de sair?
  Não, quando eu viajo assim, não como nada! Só quando chego ao local para onde estou indo. Se eu comer, danou-se!
A panfletista reparou que um pouco da cor estava voltando àquele rosto até então pálido.
Chegou à conclusão que o problema de enjoo em transportes, não tinha a ver com sensibilidade ao balanço.
  Você já teve isso acompanhada por alguém?
  Não...
  Mesmo que a viagem tenha sido longa?
   Mesmo assim! Por quê? – perguntou a moça, levemente desconfiada da estranha.
Semelhante a uma especialista, Sônia simplesmente revelou:
   Você tem medo de ficar sozinha! O pavor é tanto, que o seu organismo responde com os enjoos...
  Eu não estou tendo mais nada agora!... – comentou pensativa.
   Porque está conversando comigo... Tendo alguém para você trocar umas ideias, seu cérebro fica preenchido e esquece da viagem, e não te deixa passar mal...
   Como é que eu resolvo isso? Não é sempre que eu vou ter alguém para conversar!
   O melhor é você descobrir o porquê de ter medo de ficar sozinha... Você sempre teve isso?
  Não... Começou depois que o menino nasceu, e o pai dele me deixou...
Tudo se apresentou tão límpido, que Sônia até sorriu pela felicidade da constatação:
   ‘Tá explicado! Você tem medo do abandono! Seu organismo traduziu que viagem para longe de casa significa que alguma coisa está sendo deixada pra trás...
      com modéstia, acrescentou: - Bem, eu acho que é essa a explicação...
  Minha autoestima caiu muito depois que ele me largou. Eu quero me levantar, mas está difícil demais!
  Você vai conseguir! Pense nesse garotinho lindo que está aí no seu colo! Ele não tem culpa de nada, e precisa da mãe dele inteira! Olha, se não conseguir superar sozinha, procure um médico. Não é vergonha nenhuma... Eu mesma já procurei, quando entrei em depressão. Fiquei boa rapidinho!
Era mentira. Sônia jamais fora ao médico para curar depressão; ela não teve esse distúrbio. No entanto, para incentivar uma pessoa que necessitava, valia a pena fugir da verdade um pouco. Por uma boa causa, afinal.
  Eu sei, eu sei... Vou conseguir, se Deus quiser! Para Deus, nada é impossível!
    E se não conseguir sozinha – insistia Sônia – não esqueça: vá a um especialista, viu?
  Vou, sim... Não dá pra aguentar mais essa barra! ‘Tá pesada demais... – ela saltou, segurando firme o filho: – Caramba! Mais um pouco, e eu passo do ponto... Obrigada aí! Tchau!
  Tchau!
Pela janela, a panfletista acenou para mãe e filho, tendo o garotinho com um sorriso de poucos dentes para exibir, balançando a mãozinha rechonchuda. A mãe da criança não estava livre de seu complexo de abandono. Porém, Sônia sentiu que ela estava motivada a procurar ajuda. Reconhecer o problema é o principal caminho para a cura.
O assento ao lado de Sônia, parecia trazer escrito: “Quando um passageiro se levantar, sente-se aqui”. Com tantos lugares agora vazios, uma senhora de uns 70 anos escolheu ali para acomodar-se.
Cheia de bolsas, colocou algumas no colo e outras no corredor. Tentou mantê-las próximas de si, o quanto foi possível.
Sônia iria voltar a ouvir o rádio, quando a senhora comentou:
  Porcaria de trânsito, né, menina? Já era para eu ter chegado há um tempão na casa da minha filha...
Por educação, mesmo contrariada por não ter conseguido ainda ouvir seus sons radiofônicos, a eclética panfletista retirou o fone, e pediu para a senhora repetir o que dissera, por gentileza. Nada contra àquela senhora. Era só a vontade de apreciar umas músicas que a levaram a estar um tanto chateada, fosse quem fosse que ali se sentasse.
  Eu disse que o trânsito está uma droga, que já era para eu estar na casa da minha filha faz tempo...
A fisionomia da passageira, companheira de assento de Sônia, transmitia sensação de gostar de um bom papo. Algo nela deu à moça, uma motivação para prosseguir o começo de conversa:
  É raro não estar ruim... Também, com esse montão de reforma de estradas, viadutos, avenidas, passarelas... Mas vai ficar bonito, não vai, não? – sorriu a moça, complacente.
  Isso, vai! Alguma coisa que preste eles tinham que fazer mesmo, né? Nem ar- condicionado botaram nos ônibus...
  A gente deu um azar daqueles! Em lugares até menos evoluídos que o nosso, já têm! Falta de sorte, só isso...
  Onde a minha filha mora, por exemplo! É um buraco só, mas os transportes lá funcionam! Dá gosto viajar em ônibus lá!...
  A senhora vai pra lá agora, pelo o que eu entendi...
  Vou... Quando eu saltar daqui a pouco, ainda vou ter que pegar outro!... Toda vez que eu vou visitá-la, é esse sufoco...
Bateu uma curiosidade em Sônia, ao deter-se nas bolsas:
  Desculpe, mas... assim... Não é muito peso para a senhora carregar?
A vizinha de assento mostrou-se constrangida por uns segundos, mas permitiu- se revelar:
          São umas roupinhas que estou levando pros meus netinhos! Minha filha é orgulhosa que só, mas os meninos estão com uns shorts, umas camisetas muito batidas, sabe? Ela e o meu genro trabalham fora, até ganham bem, mas com essa crise... O dinheiro não para no bolso! Aí eu aproveitei que está chegando o Dia das Crianças, e dou um bocado de presente logo: roupas, brinquedos, videogames... – a senhora piscou um dos olhos: – Sou esperta ou não sou?
Com uma pequena risada de complô, e um aperto no braço direito da avó zelosa, Sônia teve que concordar:
           Muito esperta mesmo!... Com o Dia das Crianças aí na porta, a senhora arrumou o “álibi” perfeito! Sua filha não vai ter como renegar os presentes...
– Pois não é? A gente tem que usar a cabeça pra tudo nessa vida... – apontou com o dedo indicador o alto do crânio.
Conversaram sobre assuntos do cotidiano como se fossem  conhecidas de  longa data, e de mesma faixa etária. Sônia sentia-se feliz em ter uma companheira de viagem tão alto astral e sapiente.
Faltando poucos metros para o ponto, a senhora sinalizou que iria descer. Sônia ofereceu-se para puxar a campainha quando chegasse.
Nos segundos finais, a senhora das bolsas mostrou-se levemente emocionada. Seus olhos se embaciaram e a moça, pega de surpresa, sentiu os próprios, terem a mesma reação:
       Parabéns por sua atenção e educação com os idosos, minha filha! São raros os jovens que gostam de conversar com gente como eu!... Você deve ser uma menina muito boa de coração... Continue assim!
Estendeu o rosto para trocarem beijos faciais. Sônia conteve as lágrimas:
      Obrigada! Acho que não mereço tanto...
        Merece, sim! – um pouco antes de saltar: – Eu sempre pego esse ônibus de quinze em quinze dias, às quintas-feiras, nesse horário! Quem sabe a gente não bota o papo em dia de novo? Aí eu te conto como ficou a minha filha, a farra da criançada... – riu baixinho.
       Vamos nos encontrar, sim! Vou querer saber de tudo com detalhes, hein? – riu de volta a moça, ajudando-a a equilibrar as bolsas.
A senhora saiu com certa pressa, não sem antes jogar um adeusinho para Sônia.
Por um tempo a panfletista ficou preocupada com a senhora, porque achava que era bastante peso para ela carregar.
“Bobagem a minha! Do jeito que é simpática, alguém vai se oferecer para carregar as bolsas...”, já curiosa pelo resultado da história com a filha.
Um pequeno engarrafamento adiante, e Sônia chegara ao destino, exatamente o ponto final. Alguns poucos passageiros no transporte, ela deixando para descer por último, a propósito.
Pela primeira vez gostaria que a viagem se estendesse mais um pouco, só para conhecer novas pessoas, novas histórias, novas vivências. Para que aprendesse mais, vivesse mais.
Pela primeira vez considerou seguir uma carreira profissional, que nunca habitara suas intenções, quando tivesse formação acadêmica.
Nesta viagem de uma hora e meia percebeu, com orgulho, que possuía um dom, e iria lutar por ele. Tinha vislumbrado o ideal; era, a partir disso, correr atrás para tirá-lo do campo das ideias...
Desceu do ônibus, mas mesmo assim continuava viajando, nos pensamentos de futuro:
“Nem que eu leve a vida inteira, nem que eu gaste todo o tempo e dinheiro mas, um dia, vou ser psicóloga!...”


Para quem quiser ler antecipadamente, basta clicar nesse link do site Mary Difatto >>>> http://www.marydifatto.com.br/2019/01/imprevistos-de-uma-viagem-cotidiana.html


(Imagem:

2 comentários:

Francimary disse...

Parabéns, amiga! Excelente!

Mary Miranda disse...

Olá, Franci!

Muito obrigada, querida! Fico satisfeitíssima com a sua presença.
Um abração!!!!

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