PARA QUEM AMA GATOS

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quinta-feira, 24 de outubro de 2019

Gérson



Conto de hoje: Gérson.
Do livro de contos VIDA, VEZ... VOZ DE GATO, de Mary Difatto.
Toda quinta-feira, uma nova publicação.
A história de um gato contada por ele mesmo.



                          Gérson



Eu moro numa casa que já foi chamada de abandonada uns dois anos atrás.
Como vim parar aqui, nem sei dizer.
Só sei que o meu conceito de habitação sempre veio desse lugar, onde morava sozinho, sem praticamente contato com ninguém, nem humanos, nem outros gatos.
Talvez por ir muito buscar comida numa casa próxima (pegava ração dos comedouros dos gatos de uma moça), eu nunca fui agressivo, bravo. Não mansinho, mas bem amistoso.
Na época do cio, eu saía daqui, e brigava muito com os outros gatos; acho que tenho muitos filhos por aí...
Às vezes me machucava bastante por conta dessas brigas. Certa ocasião pensei que eu não fosse aguentar, de tantos ferimentos que adquiri.
Umas pessoas que me viram na rua daquele jeito, até disseram:
- Deve ser esporotricose. Coitadinho! Vai morrer...
As feridas secaram em poucos dias. Eu mesmo me cuidando, passando a língua várias vezes por cima delas. Pelo menos, a tal doença que disseram, não era, o que foi uma sorte minha.
Por eu ser um gato todo branco de olhos verdes, de porte grande, muita gente tentava me pegar para criar.
Até vou com a pessoa, mas volto, na primeira oportunidade que arrumo de escapar.
Sempre gostei de dormir sossegado num caixote velho que deixaram para trás, quando se mudaram daqui.
Fico imaginando o que leva uma pessoa a abandonar uma casa dessas, que estava longe de ser bonita, mas era boa.
Talvez tenha sido por causa das goteiras, dos muitos buracos na parede, por não ter piso de cerâmica, apresentar infiltração em todos os cantos...
Para ser sincero, eu só ficava aqui antes, porque estava acostumado!
Coisa muito ruim aconteceu para mim em um momento da minha vida.

A moça, tutora dos gatos onde eu costumava comer a minha ração diária, voltou para a sua terra natal, e vendeu a casa.
Lembro que a gataiada toda foi levada em caixas de transporte - eram bem uns oito.
Saíram enfeitados, com roupinhas elegantes. Eles não pareciam assustados, nem fizeram barulho. Acho que estavam felizes porque iriam com a mamãe deles para um lugar talvez melhor.
Não os invejei nem um pouco. Afinal, eu continuaria na minha casa feia, mas que era só minha.
Porém, a minha ficha caiu na hora do rango, quando me dei conta de que a festa, pra mim, havia acabado. Eu teria que ir buscar outra fonte de alimentação.
Meus problemas  apenas começavam...
Estava eu um dia dormindo, depois de ter percorrido o quarteirão atrás de comida, quando ouço um barulho de porta sendo aberta.
Era uma mulher mal encarada, que chegava com um cidadão, vasculhando tudo, observando os vazamentos, as paredes horríveis, dizendo que iria consertá-las, as fiações elétricas, tudo o que fosse possível para fazer daqui um verdadeiro lar.
Pronto. Ela era a nova dona da casa que era minha...
Para piorar, a tal mulher tinha um defeito repugnante, que um felino não consegue tolerar: odiava gatos!
Assim que me viu, berrou para eu sair, me escorraçou com o que tinha na mão.
Mas eu continuei vindo aqui.
Afinal, era o meu espaço, onde tomei conta com muito carinho, evitando ratos, baratas, pequenas cobras... Onde eu merecia continuar morando!
Ela não queria nem saber. Sempre que me via, dava cada grito:
- O que você veio procurar aqui? Não tem comida pra você, não... Xô!
Os trabalhos de reforma se iniciaram imediatamente.
Todo dia iam uns três moços profissionais da construção civil ajeitar a casa, que precisava realmente de uma dedicação especial para ficar aceitável.
Eu me escondia deles como dava.
Entretanto, um dia me descobriram. Saí correndo feito um louco!
Só que eram do bem, e sempre me davam o resto da comida, quando sentavam para almoçar as suas marmitas.
Um deles até comentou:
- Gato bonito, né, cara? Como pode não ter dono?
- É mesmo! - respondeu um dos outros dois. - De repente, é ele que não quer sair daqui. Gato é um bicho muito sistemático...
Ele acertou em cheio. Todo mundo queria me adotar. Eu é que fugia sempre!
Em menos de cinco meses, a construção ficou pronta. E era um fato incontestável: estava linda!
Por aquele período, eu passava sufoco quando a moça cismava de ver o andamento da obra.
Tinha que me esconder em algum cômodo, para que não me avistasse.
Foi até engraçado um dia, quando eu estava debaixo de uma lona, e a dona da casa se aproximou, perguntando para os profissionais, se tinham visto aquele "gato nojento" - que no caso era eu - em algum lugar.
Como sabiam do repúdio da contratadora em relação aos felinos domésticos, afirmaram que não.
Ela procurou, procurou muito, chegou a levantar a lona onde eu me encontrava, mas não me viu. Os trabalhadores ficaram rindo disfarçadamente.
Com a construção entregue, era a hora da dona vir morar, o que não foi surpresa alguma para mim.
E o que eu faria para continuar habitando esse meu cantinho adorado, sem ser enxotado?
O jeito que arrumei, foi passar o dia inteiro fora de casa, dormindo nos terraços das habitações da vizinhança, e retornava à noite, ficando na varanda, antes da nova dona levantar-se.
A comida descolava mais longe; tinha que andar muito, mas conseguia.
Essa foi minha rotina durante algum tempo, até essa moça mesma querer que eu ficasse.
Com a cara muito emburrada, qual não foi o meu susto, quando ela começou a me chamar com ração, pôr água num pote no quintal, e tudo que me convencesse a me aproximar.
Estava sendo interesseira...
É que ela começou a observar que, depois que eu fui obrigado a ficar muito tempo fora de casa,  os ratos começaram a invadir o quintal, e tinha medo que passassem a entrar pela cozinha também.
Naturalmente aceitei a comida e água. Era o que eu queria mesmo...
O medo dela em relação aos roedores nocivos era tão grande que, à noite, me deixava entrar e dormir num quartinho dos fundos, onde improvisou uma caminha bem legal.
Logo, os ratos sumiram de vez.
Mas ela nunca havia sido agradecida.
Eu pude continuar aqui em casa, só que a cara da moça sempre estava amarrada, não me deixava nem chegar perto, eu que, por algum motivo, estava gostando dela, e até ensaiava alguns ronronados, para ver se a convencia.
Chegou ao ponto de querer me mandar embora uma vez, quando não existiam mais os ratos.
No entanto, alguém a aconselhou a permanecer comigo, pois os invasores poderiam retornar.
De muito mal grado, acabou me deixando. E nada de seu coração enternecer...
Um tempo passou, e numa noite qualquer, estava eu deitado no meu quartinho, quando ouvi um barulho bem estranho vindo da cozinha.
Fiquei bem atento, e nada do som diminuir. Pelo contrário: só fazia aumentar.
Fui lá ver o que era. Meu pelo ficou todo ouriçado!
Vi chamas imensas, que lambiam os móveis daquele cômodo, e parecia que invadiriam todos os outros.
Corri para o quarto da moça, e miei bem alto, gritava, fiz um escarcéu, para que acordasse depressa.
Sua resposta, enquanto não sabia o que ocorria, era sempre a mesma:
- Sai daqui, seu gato nojento!  Quero dormir!...
Porém, eu insisti, até ela se levantar, já no objetivo de me atingir com o chinelo que arremessou.
Naquele momento, descobriu todo o problema... Percebeu que teria que sair correndo daqui, senão morreria queimada.
Levou apenas o seu celular, e na casa do vizinho, nervosa e trêmula, ligou para o Corpo de Bombeiros, para que não perdesse a casa inteira.
Os profissionais vieram de imediato, e conseguiram conter mais da metade das chamas, no que resultou numa casa bem passível ainda de se habitar.
Pelo trauma, a moça passou uns dois meses sem voltar aqui, mas chamou os trabalhadores da construção civil para reformar o que estava destruído.
Novamente ela retornou, e mais cuidadosa.
Ela admitiu para todo mundo, que havia sido um vacilo seu, de esquecer uma comida fervendo e ter ido dormir. A cortininha da janela da cozinha havia caído exatamente na chama ainda acesa. Quase que lhe custou a vida...
Por falar em vida, estou com aquela que pedi a Deus!
A dona da casa, por gratidão, passou a me tratar feito um rei!
No período em que esteve afastada, pediu para os vizinhos cuidarem de mim, para que não passasse fome.
Todos os dias vinha me ver no quintal de um dos vizinhos, embora não se sentisse à vontade para entrar na sua própria casa.
Depois que me adotou definitivamente,  passou a comprar o melhor alimento, a me dar água fresquinha, e me botar no colo.
Fui castrado há pouco tempo, o que não me dá mais vontade de sair em busca de namoradas. Logo, não quero saber de brigas!
Minha mãe também costuma tirar foto de mim a todo instante - a parte chata da situação! - e agora durmo em sua cama, aconchegado no seu travesseiro.
Diz a todos que sou o seu herói, e que se arrepende muito por ter me desprezado e me maltratado.
Agora sou o seu filhinho, e ela, é a minha mamãe.
Mãezinha me deu o nome de Gérson, por ela ser botafoguense. É uma homenagem que fez ao Canhotinha de Ouro.
Por uma tremenda coincidência, a minha pata mais forte, a que eu costumo brincar com os cabelos de mamãe, é a esquerda. Pelo jeito, também sou canhoto.
Quem sabe, um dia, não me torno um jogador de futebol?

(Imagem:
https://www.facebook.com/MaryDifattoOficial)

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