quinta-feira, 17 de outubro de 2019
Tigresa
Conto de hoje: Tigresa
Do livro de contos VIDA, VEZ... VOZ DE GATO!, de Mary Difatto.
Toda quinta-feira, uma nova publicação.
A história de um gato contada por ele mesmo.
Tigresa
Primeiramente, como forma de apresentação, sou uma gatinha tricolor, uma mistura bonita de amarelo, preto e branco. Pareço um pequeno tigre.
Gatos de três ou mais cores, geralmente são do sexo feminino, embora existam raríssimos machos com essa cor de pelagem. Eu mesma nunca vi nenhum...
Sobre a minha história de vida, logo digo que a infância toda eu passei procurando um lar.
Onde eu ficava - que era uma marquise de ônibus perto do Centro da cidade - não podia considerar um lugar digno de se viver. Queria sossego, paz, comida e água à vontade. Muito carinho também...
Ali era muito ruim, principalmente em dias de chuva, pois o vento levava aquela enxurrada para toda parte, inclusive para baixo dos bancos onde os passageiros esperavam seus transportes.
Aprendi a atravessar ruas movimentadas desde cedo, e tinha uma fama ruim de ladra por parte de camelôs que vendiam coxinhas, joelhos, salgados em geral.
Quando eles esqueciam a portinhola das carrocinhas abertas, eu pegava o alimento e saía correndo, mesmo quase queimando a boca, de tão quente.
Eu era muito xingada por eles...
Uma vez um sujeito quase me matou, quando chutou a minha barriga, de tanto ódio que ficou por eu ter levado a sua mercadoria.
Mas eu nunca fui ladra! Só pegava comida para comer... Tanto é que quando estava suficientemente alimentada, não mexia em nada de ninguém. Será que esses humanos não sabem o que é sentir fome?
Sorte eu dava quando apareciam pessoas que compartilhavam a sua comida comigo.
Meu truque para descolar um rango, era ficar olhando insistentemente para a pessoa que comprava nos camelôs. Quase hipnotizava os clientes, através de meu olhar fixo!
Vendo que eu não arredaria a patinha do lugar, alguns compradores de salgados ficavam penalizados e me davam um pedaço do que comiam. Às vezes eu descolava uns chamegos na cabeça!
Por causa dessas pessoas legais, não me tornei rebelde ou temerosa do ser humano, como alguns amigos meus de rua. Não sou totalmente mansa, mas quando pego amizade, passo a confiar, deixo que me toquem e brinquem comigo.
Um dos meus sonhos era ter uma casa onde houvesse bastante comida e água à vontade. E carinho também, como falei no início.
Acabei conseguindo o que tanto almejava, já com meus nove meses de idade, quando cismei de me abrigar num canto de um terreno nas imediações, num dia que choveu muito, e eu fiquei totalmente ensopada.
Reparei que a moça jogava uns restos de comida todo dia num amontoado de terra, para virar adubo (o quintal era repleto de plantinhas ornamentais), no que eu aproveitava para me fartar.
Mais ou menos uma semana depois, ela e o marido me avistaram.
Tremi. Pensei que seria escorraçada.
Que nada!
Eles passaram a me dar comida oficialmente! E comida gostosa, separada para mim na hora das refeições.
Ali eu tinha alegria, pois não precisava me preocupar... Dormia confortavelmente na varanda deles e era bem tratada.
Tudo estava bom, embora o casal não me pegasse muito no colo e nem tenha me dado um nome.
Durante anos, no entanto, isso me bastou e era feliz, comparada à vida que eu levava.
Porém, minha paz acabou, quando comecei a querer arrumar namorados.
Durante três anos da minha vida, não queria saber de romances.
Até escutei a moça da casa comentar com o marido certa vez:
- Essa gatinha é infértil..Ela não atrai os gatos machos... Olha que já é adulta!
- Menos mal. Já imaginou a gataria que ia ficar isso aqui? Nem pensar em mais gatos!...
Bem que dizem que mais cedo ou mais tarde, todo mundo quer namorar, e a minha vontade havia chegado, finalmente.
Claro que depois do namoro, vem a gravidez, e foi assim que fiquei, grávida, de alguns gatinhos. Minha barriga cresceu muito!...
Quando os donos da casa perceberam o meu estado interessante, não pensaram duas vezes: me puseram no carro, levando-me para bem longe da casa deles.
Passei um perrengue daqueles, como dá para imaginar...
Grávida, com fome, sede, sem lugar decente para dormir, tendo que correr de certas pessoas malvadas, não tive opção, a não ser voltar para a antiga marquise onde passei a minha infância inteira.
Tive meus bebês debaixo de um dos bancos do ponto de ônibus, em cima de um papelão que um camelô caridoso forneceu a mim.
Por piedade, ele passou a levar ração e água todos os dias, e me protegia e aos bebês, do seu modo, pois não podia me carregar para a sua casa, já que possuía dois cães que odiavam gatos.
Eram três nenês lindos! Mas, infelizmente, um morreu atropelado, logo quando o trio começou a andar com as próprias patas.
O camelô sentiu a urgência da nossa adoção, após essa morte trágica. Começou a nos oferecer para todo mundo que esperava o ônibus. Ninguém nos queria.
Até que um casal, depois do frequente oferecimento do moço vendedor, nos viu e se compadeceu daquela pobre família felina.
A primeira coisa que os nossos papais fizeram, foi nos castrar, assim que ficamos mais fortes e saudáveis.
Depois disso, é um cuidado extremo com tudo a ver com a nossa saúde e segurança.
Nós ficamos dentro de casa, e não saímos para nada, a não ser quando os nossos papais nos levam sob a vigilância deles.
Formam um casal considerado ainda diferente em nossa sociedade: são homens. Isso significa que temos dois pais.
Para nós, que somos os seus filhos, não há diferença alguma, pois o mais importante é o amor.
Meu nome eles deram de cara:
- Tigresa! O que você acha? - disse um dos dois, sorridente, alisando os meus bigodes.
- E tem outro nome? - respondeu perguntando, nosso outro papai, também sorrindo, me pondo no colo.
Por uma coincidência, meus bebês nasceram num feriado, que marcou na mente do nosso protetor lá da marquise, o camelô maneiro. Ele contou essa história para os nossos papais, logo quando nos adotaram:
- Nasceram em 21 de abril, Dia de Tiradentes. Vendi muito salgado nesse dia! - revelou ele, com ar benevolente para mim.
Portanto, nós três passamos a ganhar festinha todos os anos nessa data, com convidados e tudo, para a comemoração do nosso aniversário.
Não é o meu dia, mas como realizei o meu sonho maior de ter uma família de verdade, é como se eu tivesse nascido de novo!...
(Imagem:
https://www.facebook.com/MaryDifattoOficial)
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