Conto de hoje: Imprevistos de Uma Viagem Cotidiana
IMPREVISTOS DE UMA VIAGEM
COTIDIANA
O trajeto era o mesmo. O horário e a linha de ônibus também, de todos
os dias úteis da semana.
Porém, algo
ali soava incomum àquela panfletista de uma instituição voltada para o meio ambiente.
Sônia levava de
uma, a uma hora e meia, para chegar ao Centro da cidade.
Estando lá,
recebia instruções para a entrega das filipetas, qual o bairro, rua, até que
horas ficaria, qual equipe iria junto, quais pessoas naquele lugar seriam
ideais a serem abordadas. Tudo para conquistar ao máximo a atenção do
público-alvo. Pertencia a uma empresa de renome, que queria “limpar” a má fama
de contraventora, apoiando causas nobres.
A
singularidade do dia de Sônia começou, ao sentar-se no quinto banco à direita,
junto à janela (por estar na maioria das vezes cheio, ela tinha que se
contentar quase sempre com o assento do corredor).
Era bom sentir o ventinho vindo lá de fora! (Infelizmente, seu ônibus
pertencia ao infeliz clube dos “sem ar-condicionado”, portanto, sentar-se à
janela era um luxo!...)
Tirou o seu fone de ouvido, daqueles que cobrem toda a orelha,
evitando problemas auditivos que com o tempo pode ser provocado pelos decibéis
a mais que os fones comuns costumam ocasionar.
Comprou um
de cor única, totalmente cinza, para não chamar o olhar cobiçoso de ninguém.
Tomar a atenção, só na panfletagem, onde Sônia mostrava-se intensamente despachada.
Seu celular
era simples, da mesma cor do fone, sem aplicativos, sem alta tecnologia; servia
só para falar e ouvir rádio FM. Não havia uma estação a qual ela fosse fiel.
Porque nenhuma tocava o que ela gostaria de ouvir, isto é, “tudo”. Dentro da
música, ela era verdadeiramente eclética. Do pagode à música clássica, os
ouvidos da panfletista aceitavam com gosto. Quando enjoava de um estilo
musical, passava para outra estação, e tomava essa atitude invariavelmente, na
já acostumada rotina de ida e volta do trabalho.
Estava
ligada a um som vibrante do rádio, que naquela área onde o ônibus estava, dava
um pequeno
chiado pela falta de frequência completa, quando um rapaz se sentou ao seu lado, pedindo licença
antes.
chiado pela falta de frequência completa, quando um rapaz se sentou ao seu lado, pedindo licença
antes.
Uns 10
minutos de viagem apenas havia transcorrido para Sônia, e ela contava com a
distração que vinha do seu rádio, tão somente isso.
No entanto,
o tal rapaz demonstrava uma tristeza tão profunda, que a moça passou a prestar
a atenção em seus atos, para captar-lhe os reais sentimentos.
Logo, ele
próprio puxou conversa:
–
A senhora sabe como está o trânsito hoje, se tem engarrafamento?
Ela era
ainda bem jovem, não passava dos trinta; o “senhora” a irritou internamente:
– Sei dizer,
não... – respondeu de mau grado – Geralmente tem, mas hoje mesmo, não sei...
Com essas reformas que estão acontecendo...
Voltou a ouvir a
música que tocava, mas já tinha virado outra.
Uma coisa deu nela de observar detalhadamente o rosto daquele
notoriamente jovem – ele, sem sombra de dúvida, não passava dos vinte –,
sentindo que a história do trânsito era só desculpa. Na verdade, só queria
conversar com alguém. Pressentindo essa situação, o tratamento “senhora” perdeu
a conotação de envelhecimento. Ele era apenas um cara educado.
Retirou o fone de ouvido. Colocou na cabeça que iria
descobrir o “mistério” do rapaz:
– Você não está atrasado para
o trabalho, está? – disse ela, com um sorriso modesto.
Ele pareceu sobressaltar-se
com o interesse da estranha ao seu lado, mas gostou que alguém o visse:
– Não, não... – o cenho ficou
mais fechado. Sônia podia jurar que ele estava à beira das lágrimas.
– Desculpe a minha
intromissão! – disse ela, sinceramente arrependida do comentário.
–
Que isso? Você não está se intrometendo, não!...
“Agora descolei
um ‘você’!”, se divertiu ela, no pensamento.
– Trabalho hoje em dia está
complicado... – falou a moça por falar, não tinha objetivo algum além de só
prosseguir a conversa – Mas a gente tem que ter fé, não é mesmo? Tudo há de dar certo!...
Neste exato
momento, o rapaz revelou:
–
Pois acabei de perder o meu hoje...
Sônia levou a
mão a boca, automaticamente:
–
Ai, me desculpe, desculpe mesmo... Puxa vida!...
–
Sem problema! Eu estou bem...
Dali ele
contou toda a história, que a empresa estava fazendo corte de pessoal,
contenção de despesa por causa da crise. Ele, exatamente por ser muito jovem, e
não ser ainda casado, foi um dos muitos escolhidos para a demissão. Era
estoquista de um supermercado, mas já contava com bastante experiência, apesar
dos seus poucos 19. Não era casado, mas tinha uma filhinha de dez meses com a
sua namorada, com a qual pretendia se unir em breve.
– Não fique assim... Você é
muito novo! Com essa experiência que já tem, há de aparecer um emprego! E bem
melhor, você vai ver!
Ela não poderia
afirmar, mas o rapaz demonstrou bem menos angústia.
–
Talvez você esteja certa... É que essa notícia me pegou de surpresa!...
O recém-desempregado olhou de um lado ao outro pelos
vidros das janelas para se situar. Percebeu que seu ponto para saltar se
aproximava:
–
Vai descer, não é isso?
–
É, sim...
– Qualquer hora você vai pegar
esse ônibus, e me dirá que está de emprego novo! – ela sorriu – Acredite!
O sorriso ainda
sem cor, mas os olhos dele traziam um novo brilho:
– Foi um prazer te conhecer! –
ele apertou a mão de Sônia com respeito – Obrigado pela força! Muito obrigado mesmo!
Saltou e
sumiu-se pelas ruas. Onde morava, uma incógnita. A esperança, no entanto,
começara a brotar nele na simples conversa com a panfletista. Isso era claro.
Ele só queria
desabafar. Três ou quatro minutos foram suficientes...
Depois disso, Sônia recostou-se melhor no assento, com a
cabeça em ligar o rádio.
Porém, houve uma interrupção em seu intento, quando uma
moça com um garotinho no colo, acomodou-se, suada e ofegante, no assento vazio
ao seu lado.
A
panfletista pensou em perguntar do que se tratava, entretanto, trazia um receio
de que a mulher com o bebê lhe desse um “fora”. Há pessoas que precisam de
ajuda, mas não querem parecer que precisam.
– Ai, não estou bem... –
declarou a mulher, parecendo ser um esforço a simples fala.
Com esse
comentário, Sônia sentiu-se na liberdade para a pergunta clássica:
–
O que que você tem?
–
Estou com medo de ficar enjoada!
–
Medo de enjoo? Mas você já está enjoada, não?
–
Não... Mas tenho medo de ficar!
Sônia vira
muitas pessoas terem ânsia de vômito, e até mesmo jogarem fora o conteúdo de
seus estômagos em veículos, sobretudo em viagens longas. Muitos organismos, por
falta de costume de viajar, têm sensibilidade ao balanço de transporte público,
seja ônibus, trem ou principalmente barca. Nada, porém, comparado àquilo, uma
pessoa passar mal só em imaginar que pode
passar mal...
–
Você já ficou enjoada antes em ônibus?
–
Algumas vezes...
–
E como foi que você lidou com a situação? Pediu ajuda... Como foi?
–
Eu saltei antes do ponto...
O garotinho
de um ano e pouco, estava quieto, mordendo sua chupeta. De vez em quando
esticava seus espertos olhinhos verdes, para mirar a mãe. Continuava a morder a
chupeta, como se quisesse manter a calma.
–
Você se consultou com algum médico?
– Não... Quando a viagem é
demorada, tomo um remédio antes. Me dá um sono danado, mas não passo mal. Hoje
eu não podia dormir! Estou levando o menino... – disse a moça, visivelmente
preocupada com sua própria situação.
Sem saber
o que fazer, mas com vontade de ajudar aquela mãe, algo levou Sônia a perguntar
mais sobre o assunto:
–
Vem cá... Toda vez que você teve esse problema, estava sozinha?
–
Estava...
–
Tinha comido antes de sair?
– Não, quando eu viajo assim,
não como nada! Só quando chego ao local para onde estou indo. Se eu comer, danou-se!
A panfletista reparou que um pouco
da cor estava voltando àquele rosto até então
pálido.
Chegou à conclusão que o
problema de enjoo em transportes, não tinha a ver com sensibilidade ao balanço.
–
Você já teve isso acompanhada por alguém?
–
Não...
–
Mesmo que a viagem tenha sido longa?
– Mesmo assim! Por quê? –
perguntou a moça, levemente desconfiada da estranha.
Semelhante a
uma especialista, Sônia simplesmente revelou:
– Você tem medo de ficar
sozinha! O pavor é tanto, que o seu organismo responde com os enjoos...
–
Eu não estou tendo mais nada agora!... – comentou pensativa.
– Porque está conversando
comigo... Tendo alguém para você trocar umas ideias, seu cérebro fica preenchido
e esquece da viagem, e não te deixa passar mal...
– Como é que eu resolvo isso?
Não é sempre que eu vou ter alguém para conversar!
– O melhor é você descobrir o
porquê de ter medo de ficar sozinha... Você sempre teve isso?
–
Não... Começou depois que o menino nasceu, e o pai dele me deixou...
Tudo se apresentou tão límpido, que Sônia até sorriu pela
felicidade da constatação:
– ‘Tá explicado! Você tem medo
do abandono! Seu organismo traduziu que viagem para longe de casa significa que
alguma coisa está sendo deixada pra trás...
–
com modéstia, acrescentou: - Bem, eu acho que é essa a explicação...
–
Minha autoestima caiu muito depois que ele me largou. Eu quero me
levantar, mas está difícil demais!
–
Você vai conseguir! Pense nesse garotinho lindo que está aí no seu
colo! Ele não tem culpa de nada, e precisa da mãe dele inteira! Olha, se não
conseguir superar sozinha, procure um médico. Não é vergonha nenhuma... Eu
mesma já procurei, quando entrei em depressão. Fiquei boa rapidinho!
Era mentira.
Sônia jamais fora ao médico para curar depressão; ela não teve esse distúrbio.
No entanto, para incentivar uma pessoa que necessitava, valia a pena fugir da
verdade um pouco. Por uma boa causa, afinal.
– Eu sei, eu sei... Vou
conseguir, se Deus quiser! Para Deus, nada é
impossível!
–
E se não conseguir sozinha – insistia Sônia – não esqueça: vá a um
especialista, viu?
–
Vou, sim... Não dá pra aguentar mais essa barra! ‘Tá pesada demais... –
ela saltou, segurando firme o filho: – Caramba! Mais um pouco, e eu passo do
ponto... Obrigada aí! Tchau!
– Tchau!
Pela janela,
a panfletista acenou para mãe e filho, tendo o garotinho com um sorriso de
poucos dentes para exibir, balançando a mãozinha rechonchuda. A mãe da criança
não estava livre de seu complexo de abandono. Porém, Sônia sentiu que ela estava
motivada a procurar ajuda. Reconhecer o problema é o principal caminho para a
cura.
O assento ao lado de Sônia, parecia trazer escrito: “Quando um
passageiro se levantar, sente-se aqui”. Com tantos lugares agora vazios, uma
senhora de uns 70 anos escolheu ali para acomodar-se.
Cheia de bolsas, colocou algumas no colo e outras no corredor. Tentou
mantê-las próximas de si, o quanto foi possível.
Sônia iria
voltar a ouvir o rádio, quando a senhora comentou:
–
Porcaria de trânsito, né, menina? Já era para eu ter chegado há um
tempão na casa da minha filha...
Por
educação, mesmo contrariada por não ter conseguido ainda ouvir seus sons
radiofônicos, a eclética panfletista retirou o fone, e pediu para a senhora
repetir o que dissera, por gentileza. Nada contra àquela senhora. Era só a
vontade de apreciar umas músicas que a levaram a estar um tanto chateada, fosse
quem fosse que ali se sentasse.
–
Eu disse que o trânsito está uma droga, que já era para eu estar na
casa da minha filha faz tempo...
A
fisionomia da passageira, companheira de assento de Sônia, transmitia sensação
de gostar de um bom papo. Algo nela deu à moça, uma motivação para prosseguir o
começo de conversa:
–
É raro não estar ruim... Também, com esse montão de reforma de
estradas, viadutos, avenidas, passarelas... Mas vai ficar bonito, não vai, não?
– sorriu a moça, complacente.
–
Isso, vai! Alguma coisa que preste eles tinham que fazer mesmo, né? Nem
ar- condicionado botaram nos ônibus...
–
A gente deu um azar daqueles! Em lugares até menos evoluídos que o
nosso, já têm! Falta de sorte, só isso...
–
Onde a minha filha mora, por exemplo! É um buraco só, mas os
transportes lá funcionam! Dá gosto viajar em ônibus lá!...
– A senhora vai pra lá agora,
pelo o que eu entendi...
–
Vou... Quando eu saltar daqui a pouco, ainda vou ter que pegar
outro!... Toda vez que eu vou visitá-la, é esse sufoco...
Bateu uma
curiosidade em Sônia, ao deter-se nas bolsas:
– Desculpe, mas... assim...
Não é muito peso para a senhora carregar?
A vizinha de assento mostrou-se constrangida por uns segundos, mas
permitiu- se revelar:
–
São umas roupinhas que estou levando pros meus netinhos! Minha filha é
orgulhosa que só, mas os meninos estão com uns shorts, umas camisetas muito
batidas, sabe? Ela e o meu genro trabalham fora, até ganham bem, mas com essa
crise... O dinheiro não para no bolso! Aí eu aproveitei que está chegando o Dia das Crianças, e dou um bocado de
presente logo: roupas, brinquedos, videogames... – a senhora piscou um dos
olhos: – Sou esperta ou não sou?
Com uma
pequena risada de complô, e um aperto no braço direito da avó zelosa, Sônia
teve que concordar:
–
Muito esperta mesmo!... Com o Dia
das Crianças aí na porta, a senhora arrumou o “álibi” perfeito! Sua filha
não vai ter como renegar os presentes...
– Pois não é? A gente tem que usar a cabeça pra tudo nessa vida... –
apontou com o dedo indicador o alto do crânio.
Conversaram
sobre assuntos do cotidiano como se fossem
conhecidas de longa data, e de
mesma faixa etária. Sônia sentia-se feliz em ter uma companheira de viagem tão
alto astral e sapiente.
Faltando poucos metros para o ponto, a senhora sinalizou que iria
descer. Sônia ofereceu-se para puxar a campainha quando chegasse.
Nos segundos finais, a senhora das bolsas mostrou-se levemente
emocionada. Seus olhos se embaciaram e a moça, pega de surpresa, sentiu os
próprios, terem a mesma reação:
– Parabéns por sua atenção e
educação com os idosos, minha filha! São raros os jovens que gostam de
conversar com gente como eu!... Você deve ser uma menina muito boa de
coração... Continue assim!
Estendeu o
rosto para trocarem beijos faciais. Sônia conteve as lágrimas:
–
Obrigada! Acho que não mereço tanto...
–
Merece, sim! – um pouco antes de saltar: – Eu sempre pego esse ônibus
de quinze em quinze dias, às quintas-feiras, nesse horário! Quem sabe a gente
não bota o papo em dia de novo? Aí eu te conto como ficou a minha filha, a farra
da criançada... – riu baixinho.
– Vamos nos encontrar, sim!
Vou querer saber de tudo com detalhes, hein? – riu de volta a moça, ajudando-a
a equilibrar as bolsas.
A senhora
saiu com certa pressa, não sem antes jogar um adeusinho para Sônia.
Por um tempo
a panfletista ficou preocupada com a senhora, porque achava que era bastante
peso para ela carregar.
“Bobagem a minha! Do jeito que é simpática, alguém vai se oferecer
para carregar as bolsas...”, já curiosa pelo resultado da história com a filha.
Um pequeno engarrafamento adiante, e Sônia chegara ao destino,
exatamente o ponto final. Alguns poucos passageiros no transporte, ela deixando
para descer por último, a propósito.
Pela
primeira vez gostaria que a viagem se estendesse mais um pouco, só para
conhecer novas pessoas, novas histórias, novas vivências. Para que aprendesse
mais, vivesse mais.
Pela
primeira vez considerou seguir uma carreira profissional, que nunca habitara
suas intenções, quando tivesse formação acadêmica.
Nesta viagem
de uma hora e meia percebeu, com orgulho, que possuía um dom, e iria lutar por
ele. Tinha vislumbrado o ideal; era, a partir disso, correr atrás para tirá-lo
do campo das ideias...
Desceu do ônibus, mas mesmo assim continuava viajando, nos pensamentos
de futuro:
“Nem que eu leve a vida inteira, nem que eu gaste todo o tempo e
dinheiro mas, um dia, vou ser psicóloga!...”
Para quem quiser ler antecipadamente, basta clicar nesse link do site Mary Difatto >>>> http://www.marydifatto.com.br/2019/01/imprevistos-de-uma-viagem-cotidiana.html
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2 comentários:
Parabéns, amiga! Excelente!
Olá, Franci!
Muito obrigada, querida! Fico satisfeitíssima com a sua presença.
Um abração!!!!
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