quinta-feira, 26 de setembro de 2019
Linda
Conto de hoje: Linda.
Do livro de contos VIDA, VEZ... VOZ DE GATO, de Mary Difatto.
Toda quinta-feira, uma nova publicação.
A história de um gato contada por ele mesmo.
Linda
Para começo de conversa, sou uma gata escaminha.
"E o que é isso?", alguns podem se perguntar.
É que eu nasci com uma pelagem diferente, nas cores preta e amarela, espalhadas de tal forma, que lembram muito o casco dos jabutis. Por isso, há quem me ache com cara de tartaruga.
Gatinhas assim - somos sempre fêmeas! - são chamadas de feias, porque o nosso rostinho apresenta umas camadas consideradas esquisitas, nas cores mencionadas, parecendo manchas ou deformações.
Pode soar como brincadeira minha, mas fui alvo de muito preconceito por causa disso...
A primeira coisa que diziam quando me viam:
- Que gatinha mais feia!
Ou então:
- Coitadinha! Tão feinha... Não vai ser adotada nunca!
Pois até que acertaram mesmo...
Eu tinha comida e água à vontade onde eu morava, a companhia de outros gatos, um lugar quentinho para dormir. Estava abrigada do frio, da chuva e do calor.
Mas ninguém me adotava para fazer parte de sua família...
Todos esses benefícios eram permitidos, graças a uma senhora muito bondosa, que trazia o conforto para nós, numa casa abandonada no bairro.
Pela manhã bem cedinho, ela estava lá, com vários pacotes de ração e jarro grande de água. Levava também material de limpeza, para não criar bactérias que pudessem transmitir doenças para nós.
Brincava com a gente, fazia carinho, mas não podia nos levar para a sua própria casa, por ser o seu lar, um espaço muito pequeno.
Ela lutava por nós!
Uma vez a Prefeitura de nossa cidade, queria nos retirar à força de lá, dizendo que a construção tinha dono, e a senhora bondosa estava invadindo uma propriedade particular.
Conseguiu ela provar na justiça, através de um abaixo-assinado, que a casa estava abandonada há anos, que não aparecia ninguém ali e que, abrigando os gatos, estava servindo para alguma coisa útil.
Ficou estabelecido que o trato duraria pelo o tempo de vida da moça. Ela falecendo, a Prefeitura tomaria outras providências.
Nada dura para sempre.
Mais ou menos uns dois anos depois desse trato, nossa querida protetora nos deixou... Deve ter ido morar com Papai do Céu, aquele anjo de tão puro coração!
Daí nossas vidas felinas tomaram rumos diferentes, principalmente para mim, por ser escaminha, como eu já falei antes.
Após eu ser resgatada junto com os outros gatos, devido o falecimento da moça protetora, eu não tive paradeiro em lugar algum.
Fiquei indo para vários locais, os chamados lares temporários, e ninguém, mas ninguém mesmo, quis me adotar...
Sempre eu era a feia da turma.
Recebia carinho, alisavam a minha cabeça, mas na hora de adotar, optavam por outro bichano considerado bonito. Aquilo era uma tortura para mim...
Num período de minha vida, fui mandada para uma casa muito simples, com poucos recursos, cujos donos formavam um casal de idosos, que faziam tudo o que podiam para nos criar com o mínimo de dignidade.
Como os dois idosos eram bem pobres, e não recebiam ajuda externa, havia escassez de comida. Muitas vezes almoçávamos, mas não jantávamos, uma ração que não tinha muita qualidade. Éramos em número de 20 gatos mais ou menos. Por serem bem velhinhos, não tinham muita força, portanto, às vezes, a casa ficava um tanto suja.
A vizinha deles, uma alma boa, sugeriu que eles se unissem a uma feira de adoção de animais para assim, com o número reduzido de gatos, pudessem cuidar melhor dos poucos que restassem.
Assim fizeram e a coisa deu certo: de 20 gatos, sobraram apenas 5.
Eu era uma desses 5...
Por piedade do casal, uma das coordenadoras da feira resolveu ficar conosco, deixando apenas um gatinho com os idosos, já que eles garantiram que de um só, poderiam dar conta.
Uma vez que eu fiquei com essa coordenadora, passei a participar de todas as feiras de adoção para buscar um lar definitivo.
Era muito interessante as propagandas que usavam para tentar convencer o candidato a adotante, a me levar.
Colocavam lacinho rosa no meu pescoço, avisavam que eu já era castrada, que eu era muito calminha, ronronadora e inteligente também. Que eu sabia usar a caixa de areia direitinho, não tinha frescura para comer, era saudável e bem jovem.
Tudo verdade! Mas ninguém me levava, mesmo com todos esses predicados!...
Às vezes a vida pode nos surpreender, e foi na oitava ou nona feira que eu participava, que minha sorte mudou.
Acompanhado dos pais, aproximou-se um garotinho de seus 5 anos, tão gracioso menino, que fez carinho no meu corpinho e sorriu para mim. Eu correspondi com o meu ronronar mais audível!
Ele disse:
- Mãe, quero esse gatinho!
Os pais se entreolharam, e a mãe comentou:
- Esse, não, filho. Tem gatinhos mais bonitos...
O marido dela ajudou:
- É, filho. Esse é muito feio!
A coordenadora não gostou do comentário e tratou de explicar:
- Senhor, não fala mal da gatinha! Ela é um animal igualzinho aos outros que estão aqui. Merece amor e carinho do mesmo jeito!
- É fêmea? - perguntou a mãe do garoto.
- É, sim. Toda escaminha é fêmea.
Sem constrangimento nenhum, o menino insistiu:
- Quero ela! Quero que seja a minha gatinha!
Falando baixinho o pai:
- Mas você não acha ela feia?
- Não, ela é linda!
Quase meia hora depois, e os pais ainda tentavam convencer o filho a escolher outro gatinho.
Porém, ele estava renitente, dizendo que havia gostado de mim, e que não retornaria para a casa, se não pudesse me levar.
Ouvi a conversa dos pais dele com a coordenadora, que o menino tinha déficit de atenção na escola de pré-alfabetização, e que o psicólogo explicou que o menino deveria ter um animalzinho de estimação.
Sugeriu um gato, por ser um animal independente, mas ao mesmo tempo amoroso. Por isso eles estavam naquela feira no dia, em busca de um felino bem tranquilo.
A coordenadora reforçou a minha definição:
- Pois essa gatinha é um amor! Será o ideal para fazer companhia ao garotinho.
Eles abanaram a cabeça inconformados.
A mãe dele repetiu:
- A senhora me desculpe, mas essa gatinha é tão feinha... Eu queria uma melhor!
A coordenadora disse apenas:
- Mas se o menino já fez a escolha...
Nesse momento, eu estava largada no colo do garotinho, feliz, mas aflita ao mesmo tempo, por temer que ele não conseguisse convencer os pais.
Com a voz baixa e lágrimas escorrendo dos olhos, o menino disse:
- Deixa eu levar ela, mãe. Eu gosto dela...
Foi assim, com a perseverança do meu pequeno papai que vim, finalmente, a ter um lar de amor e paz, como eu sempre sonhei.
Até os pais do meu papai passaram a gostar de mim, por eu ser muito doce, extremamente carinhosa.
Sobre o meu paizinho, não tenho palavras para defini-lo. Como ele é bonzinho!...
Sempre me coloca no colo, me dá ração - ele mesmo acorda por volta de oito horas da manhã e vai direto no meu comedouro me servir - troca a minha água. Eu recebo tanto beijo dele... Como eu amo e sou amada!
Ouvi a conversa dos pais dele, e descobri que o filho melhorou bastante na escola, está se enturmando, anda mais contente. Isso tudo depois que me adotou.
Agora falando sobre o meu nome, foi ele quem me batizou de Linda.
Quando alguém o pergunta porque o meu nome é esse, ele fica intrigado e responde na hora:
- Linda porque ela é linda, ué? Você não está vendo?!
Depois que conheci meu papai, nunca mais alguém me chamou de feia.
Não sei se é por medo que meu paizinho brigue ou porque eu sou bela realmente.
Eu acho que o bom coração do meu papai deixa tudo bonito!...
(Imagem:
https://www.facebook.com/MaryDifattoOficial)
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