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sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

Lendo nas entrelinhas



Nem sempre o que é bem explicado, fica claro em nossas mentes. A inteligência humana ultrapassa o entendimento fornecido por um simples cérebro.
Eu gosto de explicar o que acho que sei, é verdade, mas tenho consciência da insignificância deste meu zelo por transmitir informações, quando esbarro com situações as quais não tenho domínio.
Em dezembro do ano passado, por exemplo, eu andava despreocupada, ainda que atenta, nas ruas do Centro do Rio, quando um desses "motoristas" de táxi (sim, esse era com aspas mesmo!), vira a esquina que eu estava atravessando, sem o mínimo de cuidado, quase me atropelando.
Minha vida salva por apenas segundos! E o mais interessante: só não fui atropelada porque o som de desgoverno do automóvel me forçou a me jogar para trás, o suficiente para sentir o ventinho da corrida amarela do transporte.
Cadê o brilho de estrela do cérebro eminente? O que valeu ali, naquele momento, foi apenas a prática, o costume de ver ensandecidos disfarçados de guiadores de carro.
A tal "leitura de mundo", tão apregoada em aulas de literatura ou de filosofia, parecendo um filão brega e repetitivo, de que o que vale é o que você entende acontecendo ao redor, se faz de suma relevância em momentos quais aquele que me obrigaram a passar. Tive que "ler", e às pressas, o que rolava por ali, tão perto de mim, que até doeu a alma.
Fiquei dias pensando, remoendo o arremedo de instante, tão curto, tão fácil de jogar fora do mnemônico que, porém, poderia ter me levado a vida. Um subentendido que está difícil de digerir até hoje, por mais que eu tente me convencer de que "já passou".
O que mais assusta em viver,  é saber que muito do que aprendi posso usar no meu cotidiano, e muito do que não aprendi, não será possível de se aprender... SÓ o momento vivenciado tem condições de me passar subsídios de como resolver essa ou aquela problemática; SÓ  vivendo é que posso saber.
É lendo nas entrelinhas que temos aparato para argumentar o conhecimento. Porque entender é maior que o jargão básico do ensino, que consiste em poder transmitir o que se absorveu. Entender é conseguir usar o que aprendeu, no momento certo, no local exato. E se a situação que a própria vida nos propôs, não temos na gaveta mental para a solução, é SÓ a entrelinha que virá em nosso socorro, um som, um gesto, um espirro de comunicação, um repente de olhar, algo que forçará o nosso eu a compreender o que ocorre, e o plantão médico da salvação ocasional, estará lá, plantão de equipe única, espécie de "exército de um homem só", que habita nossos íntimos para ocasiões diversas.
As figuras de linguagem estão ficando obsoletas com o uso da tecnologia, e pela falta de ânimo em se dar ouvidos  a pessoas ("Eu presto muita atenção ao que o meu irmão ouve" ¹ anda parecendo discurso de livro do milênio passado, o que é uma pena...) . Ninguém quer "ler" mais o seu semelhante.
Não esqueçamos que essas figuras são aquelas que trazem o por trás da cena; é preciso ir além das palavras. Sem essas figuras, muito do humano racional esmaece, já que é necessário capturar o abstrato do que se diz, entender a ironia, a metáfora do que se fala, escreve. É necessário "ler", insisto, o (a) interlocutor(a), o que dá certo trabalho para esse ataque de "eu" em massa que nossa sociedade arquitetou tão arrogantemente em nosso seio.
Seguindo adiante sobre o conhecer o que não é explicado, ainda revigorante no meu verbo lá do início, tentando desmascarar o "motorista" que quase me atropelou: será que ele percebeu o quanto fiquei abalada, mesmo saindo ilesa? Notou meu riso irônico, apontando o carro com o significado de "está valendo isso?". Creio que não; deve ser mais um desses camaradas dos conceitos A tirados na escola, que pouco se aproximam de gente, atento a letras e números imediatos.
Ele entenderia apenas uma linguagem: aquela que coloca a mão no bolso (dele). Eu poderia processá-lo por quase lesão corporal ou, sendo mais fatalista, por quase óbito. E ele só sentiu-se o supra sumo do volante porque saiu desabalado e não feriu ninguém.  Porque o "quase" não é o bastante, essa entrelinha não o faria rever conceitos. Não o faria aprender.
Eu há muito tempo sei que "tudo o que se vê não é igual ao que a gente viu há um segundo"², e essa percepção faz com que me fortaleça a cada instante, já que sempre haverá um convite para nós, para a visão do que os olhos não veem.
Aprendamos a ler mais, aprendamos a estar diante do que não se absorve em escolas e livros, com o coração aberto a novas informações.
Esse tipo de aprendizagem é  repentina, não menos, porém, importante.
Naqueles segundos preciosos percebi, com muito prazer,  que eu Ainda Estou Aqui ³. Mais chance para  fazer o que quisesse: reclamar, dormir, comer, viajar, estar.
Até mesmo para aprender.
E até para notar que há vida - quem diria? - numa entrelinha de entendimento.

¹ Trecho da música Esquadros, de Adriana Calcanhotto.
² Trecho da música Como uma Onda, de Lulu Santos.
³ Título do livro de Marcelo Rubens Paiva.


(Imagem:
Fonte desconhecida)

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