Conto de hoje: Cinza Celeste
Do livro de contos VIDA, VEZ... VOZ DE GATO, de Mary Difatto.
Toda quinta-feira, uma nova publicação.
A história de um gato contada por ele mesmo.
Cinza Celeste
Eu mesma nunca me entendi, com o meu comportamento esquisito.
Sou uma gata de 3 anos, castrada, gorda, bonita e moro com minha mãe humana desde sempre.
Recebi esse nome por causa da minha cor cinzenta, e como tenho olhos azuis, isso explica o Celeste que mamãe colocou.
Ela disse algumas vezes, que eu devo ser misturada com a raça Azul Russo. Pelo menos, a aparência eu tenho, embora esse tipo de gato não possua, geralmente, olhos azuis. Sou uma miscigenação de duas raças, pelo visto...
Eu falei anteriormente que trago um comportamento que não compreendo. Vou dizer que atitude é essa minha: sou muito rabugenta!
Apesar de tão bem tratada, ter tudo do bom e do melhor, sou extremamente mal-humorada.
Minha lista de desagrado: não gosto de colo, que me alisem o pelo, não ronrono quase nunca, não como certas rações, não gosto de dormir com a mamãe, rosno e espumo para gente que não conheço, e até a minha própria mãe eu já arranhei algumas vezes, quando ela cismou de me agradar de um jeito que não gostei.
Reconheço que eu deveria ser mais doce. Mas não consigo!
Somos só nós duas aqui em casa. Mamãe se separou e não teve filhos humanos.
Numa das vezes que arranhei minha mãe, ela chorou tanto! Disse que eu era uma filhinha muito rebelde e ingrata, que iria me doar para o primeiro que passasse na rua.
Não fez isso. Havia dito da boca para fora.
No entanto, quando recebeu a visita uma vez do seu casal de irmãos, eu escutei direitinho ela conversando:
- Não sei o que fazer com a Cinza Celeste! Que gata enjoada!... Eu sempre amei gatos, mas ela me dá nos nervos... Chega a ser ruinzinha comigo, me morde, arranha...
- Quer deixar ela comigo por uns tempos? Talvez ela queira a companhia de outros gatos! - perguntou a irmã, tentando ajudar.
- Uma boa ideia! De repente ela sente falta de outros felinos, né? Poxa, os seus são tão mansinhos... Por que a minha tinha que ser assim?
- Os animais não têm raciocínio, mas têm personalidade própria. Não parece, mas têm sentimentos como nós! - explicou a irmã, sorrindo.
- O que você acha, maninho, da ideia de levar a Cinza para junto de outros gatos? - perguntou mamãe.
- Acho que vai dar certo! - concordou o irmão. - Os animais são como a gente, têm sentimentos, como a mana falou. Um dia desses o meu cachorro, que se dá super bem com o meu gato, não
mostrou os dentes, e quase atacou o amigo? Era ciúme porque eu dei mais carinho para o gato do que para ele. Sentiu-se desprezado. No caso da Cinza, talvez ela esteja deprimida.
Um pouco antes dos irmãos irem embora, minha mãe buscou a caixa de transporte que usava para me levar ao veterinário, e me colocou lá dentro, com todo o conforto. Ao fechar a portinhola, afagou a minha cabeça, no que olhei torto, mas não arranhei.
Chegando à casa de minha tia, avistei tantos gatos, que eu jamais vi em toda a minha vida!
Como sempre, rosnei e espumei para todos, incluindo a minha tia, da qual eu não gostava do jeito muito meigo de falar comigo. A minha mãe, quando fazia isso, eu apenas tolerava.
Fui colocada numa caminha especial e afastada dos outros, e sendo incluída aos poucos junto aos gatos, geralmente na hora da comida.
Mamãe havia enviado os meus apetrechos todos, meus brinquedos (um deles, um rato de borracha, que adoro morder e deixá-lo todo furado!), meu comedouro azul e rosa, um cobertozinho florido, e uns lacinhos para pôr acima da orelha, que eu suporto por, no máximo, 1 minuto. Arranco logo!
Não deu certo esse esforço: fiquei mais rabugenta ainda!
Os outros gatos me irritavam! A voz deles era fininha demais, queriam ficar me lambendo, me dando banho... Oras! Banho eu sei tomar sozinha. Não preciso de equipe de limpeza!
Vendo que as coisas só fizeram piorar, dentro de 1 mês, eu estava de volta, com um ar tão zangado, que mamãe pensou que eu iria matá-la. Claro que não faria uma coisa dessas, mas eu fiquei muito magoada com minha mãe. Era como se ela tivesse me traído.
Tudo voltou ao normal. Eu, a chata de sempre; mamãe, o amor de pessoa.
Só que uma situação mudou as nossas vidas.
Mamãe estava voltando do trabalho, quando um desajustado passou de bicicleta, e bateu nela de cheio, e de frente.
Ambos caíram e se feriram, mas quem saiu prejudicada mesmo nessa história, foi minha mãe, que ao se precipitar ao chão de mal jeito, fraturou o fêmur.
Alguns vizinhos a levaram para o hospital, e ela retornou para casa, um dia e meio depois. Eu fiquei sendo cuidada pela minha tia nesse ínterim.
No retorno dela, eu estava deitada no sofá, e vi em seus olhos, que não estava bem.
Ela ainda é jovem, mas como o fêmur é o maior osso do corpo humano, e quebrou logo ele, minha mãe vai ter que ficar em casa por muitos meses.
Os irmãos se revezam para cuidar de tudo enquanto ela não se recupera.
Vejo mãezinha reclamar bastante, porque sempre foi muito ativa, trabalhando e estudando à noite; quer se formar em Publicidade.
Então, chora escondido, e eu vejo todas as vezes, sem ela saber.
Uma noite, quando nenhum dos irmãos estava por perto, me chamou, com uma voz tão triste...
Eu estava na cozinha, quando ouvi:
- Vem, Cinza Celeste, meu amor! Mamãe está se sentindo muito sozinha. Vem me fazer companhia, vem!
Algo naquela voz, no jeito que me chamava, tocou o meu coração.
Fui correndo atendê-la.
Quando subi na cama, a deixei alisar a minha cabeça. Por esse gesto carinhoso, pela primeira vez, ronronei para ela.
Mãezinha ficou tão feliz, que chorou de emoção! Até a permiti um aconchegamento em seu ombro por alguns minutos.
Não sei o que aconteceu comigo naquele momento. Acho que deixar a minha mãe contente, me deu uma sensação de utilidade, e ela precisava de mim.
Agora ela está bem melhor, e quem está dando a minha comida.
Brevemente vai retornar ao trabalho.
Não a vejo mais chorando, nem reclamando de nada.
Diz para todo mundo que eu a estou ajudando a se recuperar, juntamente com os irmãos tão generosos.
Eu, por minha vez, continuo a mesma rabugenta.
Ainda não gosto de colo, nem de afago. Não gosto que fiquem me paparicando, nem brincando comigo.
Porém, alguma coisa mudou.
Quando mamãe está deitada e me chama com voz muito triste, eu corro e a deixo acariciar minha cabeça. Por pouco tempo, é verdade, embora o suficiente para ela abrir um largo sorriso.
Ah, essa minha mãe não é fácil!
Sem querer, ela conseguiu descobrir o segredo do botão de ternura, botão esse, que estava desativado em mim...
(Imagem:
https://www.facebook.com/MaryDifattoOficial)
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