PARA QUEM AMA GATOS

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quinta-feira, 14 de novembro de 2019

Bebeto



Conto de hoje: Bebeto.
Do livro de contos VIDA, VEZ... VOZ DE GATO, de Mary Difatto.
Toda quinta-feira, uma nova publicação.
A história de um gato contada por ele mesmo.



                         Bebeto


Interessante essa minha ligação com a água desde pequeno.
Fui obrigado a ser um gato que vai contra a própria natureza...
Nasci pobrezinho, no meio do mato. Mamãe gata deu à luz sete gatinhos. Sete!
Até os dois meses de idade, mamávamos nela, e seu leite nos satisfazia. Ela era boa caçadora, e arrumava muito bons alimentos para nós, como passarinhos, rãs, lagartos, pequenas cobras... 
Devorávamos em dois tempos!

Naturalmente o seu leite secou, mas ela continuou cuidando dos filhos, porque era do seu gosto pessoal.
Muito engraçado aquele monte de gatos quase adultos, sugando a mamãe, sem sair leite nenhum... Ela deixava, e até ronronava!
Aquela região onde morávamos, era considerada rural. Muito raro avistarmos seres humanos.
Uma vez choveu muito, muito mesmo, e toda a área ficou praticamente submersa. Foi aí que começou a minha história com a água.
Mamãe gata, meus irmãos e eu escapamos porque não era a nossa hora de morrermos. 
Ficamos durante dias sobre uma casinha onde os donos de um sítio (acho que era), faziam de lugar para estocar alimentos.
Infelizmente, eles perderam toda a reserva, e nós, lá, famintos, em cima daquela casinha, olhando tudo se perder, sem podermos fazer nada...
Quando veio o sol,  secou tudo, e pudemos descer.
Tão fraquinhos, tristes, desesperançosos...
Nessa época já caçávamos, então, fomos nós mesmos em busca do nosso sustento.
Como muitas presas tinham morrido naquela enxurrada, a comida se fazia escassa, mas nos viramos.
Estando recuperados daquele baque, novamente passamos por um sufoco.
Uma nova enchente nos atingiu. Parecia que a natureza queria nos castigar!...
Fomos nós de novo para aquela casinha, na tentativa de que ela nos salvasse como da outra vez.
Só que, coitadinha, ela não havia resistido, e foi derrubada por aquela chuva tão forte...
Tivemos que ser audaciosos! Escalamos até o ponto mais alto do velho casarão, onde parecia ser uma torre de vigília. 
Não foi fácil chegarmos ali.
Estava tudo escorregadio, e conforme a chuva aumentava, se tornava mais dificultoso atingirmos nosso objetivo.
Conseguimos.
Muitos dias passamos lá, com muita fome e sede. 
A água baixou, e assim pudemos voltar a nossa vida felina de sempre, procurando comida, lugar para o descanso, e tudo o mais que nos deixasse confortáveis.
Outras enxurradas aconteceram, mas não de porte tão terrível como foram as outras. Fosse como fosse, sempre demos o nosso jeito de escapar, unidos, e vivendo relativamente bem.
Por um motivo que desconhecemos, começou a faltar presas para satisfazer nosso apetite.
Logo, faltando comida, ficamos muito magros e bem fracos.
Então, com muita tristeza, fui vendo meus irmãozinhos, um a um,  morrendo, e sem poder ajudá-los.
Minha mamãe, uma irmãzinha e eu fomos os únicos sobreviventes.
Mesmo para somente três gatos, a comida ainda era precária.
Quando dávamos sorte de algum animalzinho pequeno cair em nossas garras, comíamos desvairados, como se fosse a última refeição na vida.
Mamãe nos liderou para sairmos dali. Ela teve alguma intuição que deveríamos ir para a estrada de terra, que ficava a muitas horas de caminhada daquele local.
Assim fomos parar na estrada.
Passavam muitos carros e algumas pessoas jogavam latas, caixas com restos de alimento, e aproveitávamos como podíamos.
Água, bebíamos de um lago que havia perto. Para dormirmos, era no mato mesmo, na moita mais seca que houvesse.
Ficávamos perambulando muitas horas perto da estrada, com os olhos fixos no que jogavam das janelas dos carros.
A comida, no entanto, era só o suficiente para a sustentação momentânea. Pois magros, e cada vez mais fragilizados, estávamos ficando, com poucas chances de sobrevivência.
Já tínhamos perdido as esperanças de conseguirmos uma vida melhor. 
Um dia, de tão cansada e faminta, mamãe caiu na beira da estrada.
E nós, os filhinhos dela, percebemos que se não acontecesse alguma coisa de bom, não suportaria.
Como um milagre, um carro encostou perto de mamãe gata.
Uma moça, desesperada, saltou e tocou na minha mãe:
- Vamos levar essa bichinha! Ela precisa de cuidado...
- A gente está sem dinheiro... - disse a outra moça - Como levaremos para o veterinário?
- Sei lá! Vamos dar um jeito!...  Vou parcelar no cartão. Há vets que aceitam.
Iam saindo, carregando mãezinha desfalecida no colo quando, olhando para trás, a primeira moça avistou a mim e a minha irmã.
Voltou correndo:
- Olha esses outros gatos. Devem ser parentes da gatinha! São todos preto-e-branco...
- Ai, não vai me dizer que vai levá-los também?! 
- Eu te disse que queria muito um gato!
- Um, não três, né?
- Mana querida! Deixa!... Se ficarem aqui, vão morrer...
A contragosto, a segunda moça aceitou.
Por estarmos extremamente debilitados, nem conseguimos correr delas, coisa que sentíamos muita vontade de fazer, pois éramos gatos selvagens, não acostumados com gente.
Chegando na cidade, naquele movimento todo, fomos levados ao veterinário, principalmente mamãe gata, que precisava urgentemente de atendimento.
Como era de se esperar, mamãe estava anêmica e teve que ficar no soro por uns dois dias.
Nós, os filhos, fomos para casa uma hora depois.
Tudo muito estranho...
Ração, coisa que nunca tínhamos comido, água gostosa, caminha boa com muitos panos dentro de um cesto de vime.
Foi fácil nos acostumarmos com aquela nova e maravilhosa vida!
Descobrimos que a primeira moça era a irmã caçula, que estava se formando naquele ano em Direito.
No início, pelo longo tempo fora da civilização, não aceitávamos o seu carinho, muito menos gostávamos de colo.
Agora, estamos gordos e lindos!
E adoramos um colinho e um chamego na cabeça!...
Recebi o nome de Bebeto; minha mãe  e minha irmãzinha também ganharam nomes próprios.
Consideramos essa moça que nos salvou, como nossa mamãe humana e a outra que dirigia o carro, como tia.
Agora, divertida mesmo é a minha relação com água.
É algo que impressiona a todos!
Não tenho mais sofrimento com ela. Não passo por enchentes. Quando chove estamos, todos nós, devidamente abrigados.
O curioso é só na hora do banho de mamãe humana.
Toda vez que abre o chuveiro, eu arranho a porta e peço para entrar.
Uma vez lá dentro, me jogo debaixo da água e fico todo ensopado!
Posso não gostar de enxurradas, mas sou um ardoroso fã do banho dos humanos.
Mamãe gata e minha irmãzinha detestam água. Têm trauma e com razão!
No meu caso,  transformei o desespero do passado com aquele líquido quase nos afogando em muitas ocasiões, em algo prazeroso, que me deixa limpinho.
Sou raro, eu sei, pois a maioria esmagadora dos felinos domésticos só gosta de água para beber.
Eu sei que sou bem diferente dos outros, e por isso, muitos me acham maluco.
Mas não me importo.
Fico contente porque arranco boas gargalhadas da minha mãe humana, que até comprou sabonete próprio para gatos.
A hora do banho é a minha hora mais feliz!


(Imagem:
https://www.facebook,com/MaryDifattoOficial)

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