PARA QUEM AMA GATOS

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quinta-feira, 25 de julho de 2019

Carolina, A Alta


Conto de hoje: Carolina, A Alta, da antologia  Imprevistos de Uma Viagem Cotidiana, de Mary Difatto.
Toda quinta-feira, mais uma publicação.
Bons "imprevistos de viagem"!



CAROLINA, A ALTA


Saíra de frente do espelho, há poucos minutos, a complexada Carolina.
Tinha ido verificar se a espinha perto do queixo tinha sumido, e se a blusa do uniforme estava amarrotada.
Toda a sua dúvida fora confirmada. A espinha estava por lá, vermelha, com uma “coleguinha” purulenta perto da boca, e a blusa tão amassada, que aludia a um  trator que a tivesse triturado. “Eu nunca estou arrumada...”, pensou tristemente Carol. Disfarçou as espinhas com base, e a blusa, passou de novo. Era o drama  da garota dentro do seu cotidiano.
Costumava ser perturbada na escola por tudo: por ser magra demais, por não ter mochila irada, por ser muito alta, mais até que os meninos, por ainda não ter namorado, por usar óculos, por às vezes saber o que os professores perguntavam e, às vezes, por exatamente não saber, por ser estabanada e, principalmente, por ser tímida. Sua vida escolar estava longe de ser lembrada com saudade quando dela saísse.
Ela só tinha 13 anos.
Nessa idade a escola se apresenta da maneira mais cruel, quando não há o encaixe nos padrões. Carolina se sentia uma desajustada.
Acontecia uma gincana na escola onde estudava, que premiava o aluno ou aluna que pontuasse com as tarefas sorteadas. No final, quem tivesse o maior número de pontos, ganharia. Quem apenas a cumpria, recebia 5 pontos; quem cumpria melhor que o seu concorrente, 10. Eram tarefas das mais disparatadas possíveis, onde envolvia desde teste de conhecimento, até aspectos do dia a dia. Foi a maneira que a diretoria criou para não ofender os discentes. Todos poderiam participar, independentemente de posses ou sabedoria além. De alguma forma, estavam passando a ideia de inclusão.
O prêmio era um passeio ao Pão de Açúcar, com todas as despesas pagas, incluindo almoço e lanche. Tinha que levar acompanhante adulto, no caso, o responsável.
Para formular as tarefas, houve uma reunião pedagógica; seriam marcados sorteios ocasionais destas para estabelecer o novo procedimento.
Na quarta-feira, as turmas estavam abarrotando o pátio na espera do resultado do sorteio, que era feito na frente deles, sempre neste dia da semana, no recreio.
  O que será desta vez, ahn? – era a inspetora de disciplina, escolhida para tirar o papel de uma caixa de papelão mal disfarçada com papel silhueta. Por fora, escrito
o óbvio: “Gincana”.
A maioria riu, quando o sorteio revelou que os participantes teriam que levar o veterinário mais idoso ainda em atividade até a terça-feira que vem. Muitos deles confundiram o profissional que cuida de animais com o próprio pet.
   Não posso trazer meu cachorro, não? Ele é bem velhinho... – um deles perguntou.
Risos mais altos passaram a ser facilmente audíveis no local. Carolina gostou.
Conhecia uma veterinária já em idade avançada que atendia em um Posto da Prefeitura, que vacinava, limpava, dava ração, recebia doações, resgatava animais de rua; fazia o inimaginável para uma vida realmente digna para os chamados irracionais.
A menina mesma cansava de levar seus muitos cães para o tratamento com aquela profissional. Pela Prefeitura, saía mais barato; quando particular, o preço não se alterava muito.
Na terça seguinte, estava lá Carol e a idosa veterinária. Além de excelente no que fazia pró animais, a senhora também gostava de gente. Quis colaborar com a menina.
Não deu outra: 10 pontos conquistados sem quase concorrência.
Só um colega levara um homem estilo “Só cuido de bicho porque é a minha formação acadêmica”, que mal passava dos quarenta. Sorte dupla de Carol pois até se fosse no critério simpatia, sua convidada teria conquistado a pontuação máxima.
Gincanas são sempre motivo de enorme disputa, ainda mais que, por mais manjado seja o Pão de Açúcar, simboliza um passeio cobiçável, um prêmio a ser colocado na lista.
Muitos estudantes estavam empatados em pontuação, incluindo Carolina.
Houve uma vez que quiseram “comprar” a menina, a única que possuía o item pedido no sorteio. Uma raridade; por estar nessa categoria, tomou ares de relíquia.
Era um álbum de figurinhas do pai, jogado no mofo do armário de madeira de um quarto no quintal, tão obscuro, que a lâmpada estava cansada de não ser trocada.
O álbum pedido tinha que ser de figurinhas, deveria ter, no mínimo, vinte anos, estar completo e em bom estado de conservação. A observação do item era interessantíssima: não poderia ser nada que aludisse a futebol.
Por muita sorte dela, o pai tinha tido um gosto por coleção em sua adolescência. Foi custoso e demorou muito, mas conseguira preencher um álbum que trazia aspectos geográficos e históricos sobre o Brasil, de 1977. Sorte igualmente era o livro não ter se deteriorado no meio daquele caos de folhas e ferramentas.
Sem querer comentou com uma colega de cadeira vizinha, roedora de lápis, que o possuía, para sua vida não ter mais sossego.
Rapidamente, os colegas de sala descobriram que Carol existia.
Todo dia era uma “cantada” diferente, promessas de mundo de sonhos e cores, bem irresistíveis para uma garota extremamente tímida, que via naquela conversa, um jeito de ser integrada.
“Se você me der o álbum, eu vou te passar cola na hora da prova!”
“Você não liga tanto assim para essa gincana; liga? Deixa o álbum comigo, que eu te faço um penteado irado! Você vai ficar uma gata!”
“É verdade que você tem esse álbum mesmo? Traz aí, deixa eu dar só uma olhadinha... Se me agradar, te pago cinco reais!”
“Carolzinha, querida! Vem lanchar com a gente! Você está tão sozinha... Senta aqui! Gente, a Carolzinha tem um álbum que a escola está pedindo! Ela não é uma fofa? Até prometeu que vai me dar o álbum, né? Aí eu te dou minha bolsa de cachorrinho dálmata, que eu descobri que você gosta...”
Tudo muito encantador e altamente inebriante. Como saber se seria ou não apenas um embuste enquanto ela fosse útil? Mas eram ofertas a serem pensadas (menos a da cola, porque o garoto que lhe ofereceu, era uma cavalgadura...).
Nada se comparava, porém, ao convite de um certo menino de quinze anos que iria para o Ensino Médio no ano seguinte. Era um dos populares da escola, um daqueles dos suspiros e “Ai, eu nunca vou conseguir...” Simpático, mas inatingível de um modo geral.
A maior graça de seu convite, é que não tinha nada a ver com o famigerado álbum, e viera de uma casualidade. Ela se sentia honrada e superior.
Bebia ele um refrigerante na cantina e oferecera à Carol: “Quer? Pago um pra você!”
Quase sem abrir a boca, respondeu: “Não, obrigada! Já lanchei!”
“Ah, tudo bem.” – vendo-a se afastar: – “Vai ter uma festa aqui na quadra do colégio neste sábado, você deve saber. Vai vir?”
“Talvez. Vou pensar...”
Naturalmente, ela foi. Envergonhada num vestido mais curto que o usual, mas com esforço, saiu de casa para ver melhor o seu paquera de última hora.
Rigorosos com a segurança do colégio, mesmo os estudantes eram revistados pelos inspetores de disciplina antes de entrarem.
Solitário, sentado perto de um bebedouro que estava escangalhado e saía água em dois guinchos ineficientes, estava o crush de Carol, parecendo esperá-la.
A aproximação de ambos fora imediata, e logo estavam dançando, mesmo que ela não soubesse dançar, compartilhando sorrisos, trocando olhares de namoro, juntando as mãos, trocando beijos: o primeiro, o segundo, o terceiro e o quarto da vida da adolescente de treze anos. Estava apaixonada; como o manual dos novatos em romance parecia todos lerem.
Ela quase o ultrapassava em altura, mas envergava um pouco a coluna, para não constrangê-lo. Nada poderia estragar sua noite. Nada.
Sem disfarce, as colegas a invejaram. E os meninos enxergaram uma beleza na garota, que usualmente vendia sem-gracice.
Na hora de ir embora, o rapaz se oferecera levá-la em casa, ela que morava perto, e ambos poderiam ir a pé. Ele seria buscado pela mãe mais tarde, de carro.
Ficaram se beijando no portão, ele um pouco mais ousado, alisando-a por baixo do sutiã rosa. Sentiu o corpo todo bailar no toque, jamais tendo nenhuma conexão com o desconhecido como naquele momento. Um desconhecido que descobrira ali que queria conhecer.
“Já vai entrar? Fica mais um pouco!”
E mais uma rodada de beijos e amassos, Carol quase perdendo o fôlego:
“Está tarde. Minha mãe vai ficar preocupada...” – ao conseguir desapartar-se um tanto.
“Entendo. Mas, Carol, você podia fazer uma coisa?” “O quê?” – perguntou sorrindo a menina.
“Dava pra me mostrar o álbum, aquele de figurinhas? Só ver, um pouquinho só...”
Carolina era tímida, reservada, e todos os adjetivos que se aplicam a pessoas que não são expansivas.
No entanto, tinha uma qualidade que muitos costumam ignorar em relação aos muito quietos: era observadora.
Os tímidos têm a sensibilidade de notar a mudança mínima de um tom na fala, de um gesto diferente que não condiz com o discurso ou a situação.
Eis ali o comentário infeliz de um adolescente idiota. Estragou a noite de uma garota que pensava apenas em vivenciar as bonanças dentro das tempestades de sua idade.
“Não, de jeito nenhum! Você vai vê-lo lá na terça-feira, que é dia de eu levar para a escola...”
Com a fisionomia de desapontamento, o rapaz se despediu, sem mais procurar Carol. Tinha investido pesado, na concepção dele, encarar uma esquelética  daquela, que nem sabia dançar... E alta feito uma girafa! Fora um “sacrifício” imenso para o interesseiro execrável.


Muitos álbuns de figurinha chegaram às mãos dos organizadores da gincana, numa tentativa desesperada dos alunos em burlar as regras do jogo.
Entretanto, todos foram desaprovados: seus álbuns não chegavam nem a cinco anos, e nem completos estavam.
Carolina abocanhou 10 pontos sem dificuldades, sabendo do resultado por antecedência. Só a luta de todos para enrolá-la, já provava o valor do que tinha em mãos.
O raro álbum de seu pai, com mais de trinta anos de existência, voltara ao quarto bagunçado do quintal. Como consolo para o livro ilustrado, Carolina resolveu trocar  a lâmpada e limpar o ambiente de vez em quando...
As espinhas não tinham sido bem disfarçadas, mas a blusa continuava passada com desvelo. A intuição de Carolina dizia que aquele seria um dia inesquecível.
Última rodada da gincana.
O empate envolvia muitos colegas, e se essa igualdade persistisse na pontuação final, a diretoria iria sortear uma tarefa atrás de outra, até que pudesse ser realizada ali na hora. Quem a fizesse atingindo a pontuação maior, ganharia.
Um vozerio, até a diretora usar o microfone e pedir silêncio. Do contrário, anularia a gincana e, consequentemente, a premiação.
Com a paz retomada no pátio, chamou um a um dos concorrentes empatados. Carol subiu no palco improvisado junto aos demais, com o coração aos pinotes. Todo mundo atento ao que a inspetora diria ao microfone ao retirar o papelzinho. Até quem não concorria mais, estava curioso.
Aquela folha de nada, enrolada com mãos apressadas, pequena e objetiva, a primeira retirada, sem necessidade de insistência, definiu quem iria ao Pão de Açúcar, de um jeito tão banal, que Carolina ficou pensando se não seria uma brincadeira de muito mau gosto de sua sina, porque ela sempre fora uma tonta que nem sabia disfarçar umas espinhas direito.
  “O aluno mais baixo”. Bem, vale só para quem chegou à final, ok, galera? – explicou a inspetora. – Vamos lá medir um a um?
Apareceu uma fita métrica de repente, mas nessa hora Carol já estava correndo pátio afora, chorando desabaladamente. “Tinham logo que sortear aspecto físico...
Por que não sortearam quem tinha maior espinha?”, ironizou mentalmente, entre as lágrimas salgadas.
Descobriu no outro dia, como dava para perceber pelo convívio, que a  vencedora era uma colega meio arrogante, que pintava os lábios como pintasse o mundo, de tão exagerada ficava a maquiagem. Era muito baixa, e parecia que não cresceria mais, a ver pelo seu histórico genético. O mesmo poderia se dizer de Carol, mas num contexto de uma genética ao contrário da outra.
Sua altura a atrapalhara ainda por muitas vezes. Um 1,86m. que não era amistoso.
Não era pelos apelidos maldosos, pelo espanto de namorados que não gostavam de moças mais altas, porque não havia muitas sandálias delicadas de tamanho 42, por causa da escassez de camas grandes que não deixassem seus  pés para fora ao dormir quando viajava, devido ao resumido universo de profissões que sugeriam que ela tivesse: “Você perde tempo! Poderia jogar basquete ou vôlei”! Ou: “Por que não se inscreve num curso de modelo?”
Carol não queria nada disso. Só queria ser ela, a não tão tímida assim, que não precisava mais usar óculos por ter corrigido seu astigmatismo.
Ainda magra, porém, isso não a aborrecia. Aos 22 anos, não tinha mais espinhas.
Não era nem bonita, nem feia. Uma jovem mulher como outra, que sonha com um futuro melhor. Era simples conseguir, e ao mesmo tempo, complexo.
Tinha se casado, aos dezenove, com um cara que preferia mulheres bem altas.
Quando conheceu Carol, praticamente se casou com seu 1,86m.
Ela, por sua vez, gostou dele por ser legal. Simples, sem complexidade.
O Pão de Açúcar visitou uma vez, com a mãe, temerosa em cair. Teve que tomar ansiolítico antes de entrar no Bondinho.
A alta com acrofobia, uma ironia difícil de digerir.
Trabalhava sentada o dia inteiro, atendendo telefone. Daquela forma, pouca gente sabia sobre as suas altas dimensões.
Carol tinha crescido otimista, uma diferença que saltava aos olhos de quem a conhecera na infância e adolescência.
Nada de derrotismo. Carolina procurava ver o lado bom das situações sem pieguice; ela tinha consciência que nem tudo eram flores.
Quando perguntavam se ela gostava de ser tão alta, dizia que não. E logo sorria, explicando com o que tinha virado sua auto piada invariável:
“Mas ser alta tem suas vantagens. Eu não tenho dificuldade para alcançar as alças que ficam próximas do teto do ônibus, quando viajo em pé... E troco muitas lâmpadas sem precisar usar escada!...”
Dizia, automaticamente, ajeitando melhor, sua sandália plataforma salto 15.


Quem quiser ler todos os contos antecipadamente, é só clicar no link do site Mary Difatto

(Imagem:

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