Conto de hoje: Política e Politicagem, de Mary Difatto, da antologia IMPREVISTOS DE UMA VIAGEM COTIDIANA.
Toda quinta-feira.
É só chegar!
POLÍTICA E
POLITICAGEM
Trabalho de escola
era um tormento para aquela garota de quatorze anos.
Detestava.
Quando um dos professores dizia: “Trabalho para entregar
na semana que vem”, ficava carrancuda, pelo menos naquele dia do triste
anúncio.
Arrumava
um jeito de esquecer, indo tagarelar com as colegas pelos aplicativos do smartphone ou nas redes sociais, comendo
mais polenta – adorava! –, dedilhando algo ao piano que não aprendera a tocar
bem, mas servia de distração ou, apesar de ter medo, andando pelas ruas caçando
Pokémon (ela que quase fora atropelada uma vez quando tentava “pegar” um mais
longe). Tudo, menos pensar em afazeres escolares dentro de seu lar.
Daquela vez a
professora de História tinha extrapolado, na visão dela.
O tema escolhido era político, e a menina detestava política. “Eu não
vou ser ministra nem nada!”, pensava consigo mesma. Mas era o assunto do
momento, as investigações sobre desvios de verba no Governo, a corrupção que
vinha à tona, e uma prisão de líderes representativos do povo e seus afins,
praticamente todos os dias. A professora queria um contraponto da corrupção que
ocorria atualmente, com a feita no Brasil colonial, sobretudo em relação ao
“quinto” do ouro, a importância de Tiradentes na tentativa de combate nesse
processo. A garota ainda estava paralisada pelo vocábulo contraponto. ”Que droga quer dizer isso? Essa professora deve estar
de zoeira...”
A semana
passou mais rápido do que poderia supor. “Amanhã tenho que entregar aquele troço...”, refletiu, separando duas
folhas de papel almaço, com e sem pauta. “Se ao menos ela aceitasse no pendrive... Disse que tem que ser com a
letra da gente, para ter certeza de
que fizemos alguma coisa.”
Entre muxoxos
e resmungos, a adolescente rumou-se para a cozinha, um lugar
espaçoso onde tinha
uma imensa mesa, que a mãe deixava absurdamente limpa, pronta para se realizar
feitos, fossem quais fossem.
Inclusive,
fora a mãe que a alertara sobre o trabalho. Era do tipo de mãe ocupadíssima,
mas que separava uma hora para averiguar a vida estudantil dos filhos
adolescentes, um casal, que estudava no mesmo colégio em turmas diferentes.
“Bem que a mamis me falou... Que eu ia deixar para
a última hora e ia fazer tudo
nas coxas. Está tarde, caramba,
tarde...”
Tinha olhado
as horas. Todos já deitados, com sonos a serem cumpridos para a energia do dia
seguinte. E a garota ali, às 23 horas e quarenta e dois minutos, pensando ainda
no que iria escrever.
Ela pegava às
7h30min na escola...
“Essas pragas de político! Só servem para isso... A gente é obrigada a
fazer esses trabalhos ridículos, valendo nota para o primeiro bimestre... Se
não fizer, fica com zero.
Eu nunca vi
tanto ladrão! Ontem mesmo, fiquei sabendo de um rombo de mais de cem milhões de
reais! Se não fosse isso, o jornal estava dizendo, nosso Estado não teria
tantos problemas para pagar os funcionários...
E é
violência, rebelião em presídios, gente morrendo nas filas de espera nos
hospitais, linhas de ônibus que são desativadas, nomes de linhas que são
trocados e o preço da passagem que
aumenta e aumenta...
Essas pragas
de político! Cambada de cínicos, miseráveis! Quando chega época de eleição, ficam
beijando crianças e entregando santinho pra
gente, com sorriso de dente bem tratado, usando o dinheiro do povo. Eu mesma já
cansei de ver gente banguela, que fica puxando saco de candidato... E tem gente
que se vende por causa de dentadura! Ah, fala sério...
E quando chove? Não tem uma política pública que resolva, de verdade,
os casos de enchente em regiões que correm o risco de deslizamento de
barreiras.
Todo dia, é
botar o pé fora de casa, e ver um monte de mendigo. E nem são mendigos mendigos! Muitas delas, são pessoas que
perderam o emprego, e estão se aboletando por aí, porque não conseguiram pagar
o aluguel. Não têm grana nem pra comer...
Não temos
segurança! ‘Tá brabo pra gente sair na rua, pra ir à praia... Não tem
policiamento suficiente! Quando tem, os policiais não podem fazer muito, porque
alguns são menores infratores. Ninguém consegue resolver esses problemas...
Estamos às moscas, entregues às baratas!...
Essas pragas,
pragas, pragas de político...”
A garota
estava investindo o seu tempo para praguejar mentalmente.
Quando marcava perto de meia-noite, a energia elétrica se foi. Faltou
luz, sem que ela sequer tivesse escrito uma linha.
Saiu
tropeçando em busca de velas, que sabia que a mãe guardava na área de serviço,
num armário de madeira.
Acendeu
logo várias, em torno de seis, para que desse um mínimo de iluminação naquela
cozinha que começava a odiar.
Com a
luminosidade precária, começou a empurrar a escrita caneta abaixo. “Ela quer
que seja à caneta azul, para não parecer xerox...”
Sem ter ideia
de como iniciaria o tal trabalho, apelou para a cópia descarada de uma matéria
de um site que, por pura sorte, havia
salvo no notebook, que continuava
funcionando a despeito da falta de energia elétrica. O referido site era famoso por dar opinião e
informação sobre aspectos políticos, do Brasil e do mundo. A garota fez uma
colcha de retalho tão grande de palavras, que ficava imaginando se a professora
seria enganada que ela tinha feito realmente o tal contraponto.
Arrumou um
artigo biográfico sobre Tiradentes num livro antigo, dos tempos de escola da
mãe, e onde ela viu “quinto” do ouro, saiu transcrevendo, sem qualquer complexo
de culpa.
“Isso deve
enrolar a professora!...”, refletiu com um pequeno sorriso.
Caprichou na escrita. Deixou-a redonda e bem delineada, típica de
aluna exemplar, o que ela não era bem o caso. Fez isso com tanto esmero, porque
a educadora era um “carrasco” com quem lhe exibisse letra garranchada. Dizia
que aquilo estava “sujo”, e a nota ficava seriamente comprometida.
No exato
momento que finalizou o seu “trabalho” – que era perto de uma hora da madrugada
–, um barulho parecia ter abalado a casa toda, um som retumbante vindo da área.
“Meu Deus”,
– com o coração disparado – será que é algum ladrão? Ah, não! Políticos não
invadem nossas casas à noite...” – permitiu-se pilheriar com o seu medo intenso.
Não foi
conferir o motivo do estranho som. Saiu guardando o material e apagando as velas.
Foi dormir sem
ter a noção do que poderia ter causado o barulho tão estrondoso.
Embaixo do
edredom, jurou nunca mais realizar as tarefas escolares no último dia de
entrega. Achava, meio sonolenta, que era castigo divino por deixar as coisas
para a última hora, que ela deveria ser mais organizada. Juramento esse que
fora totalmente esquecido no outro dia, quando se arrumava para ir à escola.
Antes de sair de casa, no entanto, sua mãe, sem querer, havia
descoberto o misterioso motivo do barulho na área de madrugada.
Não fora nada mais que a caixa de papelão cheia de sabão em pó que
tinha caído porque, na busca pelas velas, a garota a arrastara e a deixara em
falso na beirada de cima do armário. Quando chegou para pôr a roupa na máquina
de lavar, a encontrara derramada com um “tapete” azul formado no chão.
A garota explicou o ocorrido; achou mais conveniente do que a mãe
pensar que algum animal havia entrado ali. Ela nutria pavor por bichos.
Depois de
ouvir a reclamação de sua mãe – que a alertara mais uma vez para não deixar
tarefas a serem realizadas em cima da hora –, a adolescente dos quatorze anos
de não-tô-nem-aí-para-o-que-os-mais-velhos-pensam,
se apegou mais à brincadeira sobre os políticos que fizera, confirmando que
eles “não entram mesmo em nossas casas à noite para roubar!...”
A professora recolheu todos os trabalhos, e tirou para corrigir ali
mesmo, na frente dos alunos.
Um tanto pensativa e temerosa, a menina ficou olhando para a mestra de
esguelha, ela que sentava na última fileira de cadeiras.
Era normal, para aquela professora, permitir aos alunos, algo parecido
com “recreio” enquanto corrigia, já que eles podiam conversar à vontade. Só não
podia ser em tom alto.
No final, a
educadora foi chamando um a um a sua mesa, e explicando a nota que recebeu. Na
vez da garota, disse:
–
Até que seu trabalho me surpreendeu! Você não gosta muito das minhas
aulas, que eu sei, não presta muito a atenção... Mas ficou bem interessante
como você conduziu e dispôs seu ponto de vista! Um contraponto que eu queria
mesmo encontrar, e a maioria não soube fazer!...
“Isso é que é contraponto, então...”, pensou a garota,
divertida.
–
A única coisa que eu não gostei – prosseguiu – é da letra. Você poderia
ter caprichado! Não está muito satisfatória, por isso te apliquei a nota 8. Se
não fosse por isso, seria 10, com certeza!
A garota
ficou meio chateada pela reclamação da professora, sobre a melhor letra que ela
conseguia fazer, para logo dar lugar a uma satisfação: “Consegui embromar a
professora! Ela nem percebeu que eu copiei tudo!”
Já sentada em
sua cadeira, a adolescente levantou a mão, pedindo a palavra:
– Professora!
– Sim, pode falar!
– É que... sabe? Eu acabei de
descobrir uma coisa bem legal...
–
E o que foi? – perguntou a mestra, olhando com mais firmeza para aquela
sua recente revelação de boa aluna de História.
– Bem, eu descobri que adoro política!...
Se você quiser apreciar antecipadamente os outros contos da antologia, basta clicar neste link no site Mary Difatto >>>> http://www.marydifatto.com.br/2019/01/imprevistos-de-uma-viagem-cotidiana.html
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