Conto de hoje: Inveja Inexplicável.
Da antologia IMPREVISTOS DE UMA VIAGEM COTIDIANA, de Mary Difatto.
Toda quinta-feira, uma nova publicação.
Bons "imprevistos de viagem"!
INVEJA INEXPLICÁVEL
O vizinho de duas casas após a dele passou, com passos certeiros,
fazendo um sujeito de nome Ademar prestar bem a atenção em seus gestos.
Leandro era
um cara de porte atlético, não alto, mas de estatura mediana convincente,
semi-calvo, andar posudo, sorriso franco, olhos vigilantes, vivido e bem
quisto, no auge de seus quarenta e poucos anos. Não havia quem não gostasse
dele, considerado um exemplo do que é ser um bom vizinho.
Trabalhara
como paraquedista do Exército, chegando a oficial, e nos dois últimos anos,
infelizmente, por deslocamento da clavícula esquerda. Num dos raros saltos mal
dados, fora afastado para tratamento, logo em seguida, sendo aposentado, apesar
de sua imploração para que o mantivessem na infantaria. Sua aposentadoria
acontecera, não tendo ele motivo algum para reclamar: o dinheiro que recebia
mensalmente era bem adequado ao seu mérito.
Estava separado da esposa há dois anos, não tendo filhos. Com a atual
namorada, uma moça doze anos mais nova que ele, pretendia se casar novamente e
ter, pelo menos, um bebezinho para alegrar a casa. Leandro, por aquele tempo,
não morava com a namorada, e tinha a companhia apenas de um casal de cães e um
gato, todos castrados. A moça cansava de rir porque ele conversava com os animais
como se fossem crianças.
Talvez por ter sido do Exército, ele era bastante disciplinado.
Acordava muito cedo, comia alimentos sem gordura, seguia uma dieta balanceada.
Fazia exercício todos os dias na praça em seu próprio bairro, usando os dez
aparelhos não quebrados do espaço (dois deles, os vândalos trataram de
deteriorar). Corria o campo todo, ingerindo muita bebida isotônica. Sua
geladeira andava repleta delas, das melhores marcas.
Cada um fazia
muitas “apresentações” interessantes, como o seu cão macho,um labrador misturado com SRD, que recebia as visitas com
um meneio de cabeça como cumprimento. A cadela, uma chihuahua marrom e branca,
dançava na ponta das patas traseiras, com uma sainha rosa de bailarina. E o
gato, um “frajolinha” de classe, embora sendo um SRD, que parecia estar sempre
de fraque e luvas brancas, já dava a
patinha direita para qualquer um que o pedisse. Era só estender a mão. O felino sabia também andar de skate
feito especialmente para ele, com um capacete azul que era uma graça. Na
verdade, todos os animais conheciam vários truques que, pacientemente, Leandro
os ensinara.
No entanto,
Leandro não sabia da existência de alguém que o invejasse. Ademar era essa
pessoa, que queria tudo o que ele possuía.
Ter
conquistas materiais eram fruto de trabalho, iniciado na adolescência, ao se
preparar da maneira correta e objetiva, estudando e perdendo festas de fim de
semana. Suas vitórias eram consequência de uma luta elaborada desde
sempre. Era assim que Leandro raciocinava.
Leandro
encarava as imitações de Ademar como simples “admiração”.
É natural
querermos ser parecidos com pessoas, ao reconhecermos nelas, atributos que
julguemos superiores aos nossos. O próprio ex-paraquedista já copiou um corte
de cabelo de algum colega – quando ainda tinha cabelos em abundância – e nem
por isso se considerou “invejoso”.
Uma ou outra
vez que alguém imita algo de uma pessoa, decididamente, Leandro não encarava
como algo ruim. Era normal, era humano.
Jamais o
ex-PQD iria considerar um ainda rapaz – mal passava dos 30 anos – o Ademar, um
cara bonito – até ele como heterossexual tinha que admitir –, de família bem de
vida, que tinha uma bela esposa, uma casa espaçosa e elegante, um bom carro,
celulares modernos e caros, vários amigos, um rapaz que trabalhava com o pai e
saía na hora que queria, fosse ter inveja dele, um sujeito bem situado, mas que
tudo que chegara às mãos fora na base do imenso sacrifício, de acordar cedo, de
enfrentar transportes lotados, de tomar o desjejum com pães dormidos, de não
ter dinheiro no bolso para comprar uma caneta, todo o “pacote” incluído dos que
os abastados julgam clichê de pobre para se fazer de “vítima”. Mal sabem eles
que aquilo por que passara Leandro, corresponde ao cotidiano da maioria da
classe trabalhadora de nosso País. A mais pura realidade, tão real, que chega
ao deboche de parecer fantasia para os desinformados.
Os dois
vizinhos mantinham uma relação de amistosidade apenas; nada de discussões, mas
nada de intimidade.
Logo quando
Leandro se mudara para aquele bairro, em uns poucos dias, pensava até que
Ademar fosse homossexual, de tanto que o rapaz o observava. Depois passou a
achar que tinha problema mental. Até fechar o assunto classificando-o como mero
admirador, através dos elogios que o rapaz fazia aos objetos adquiridos pelo
recém-chegado, como lanternas, chaveiros ou bermudas simples, mas práticas. No
entender do ex-paraquedista, Ademar jamais teria inveja de artigos que ele
próprio poderia comprar bem melhores. Só de fato a admiração pelo bom gosto do
outro, fazia sentido em seus comentários naturais.
Mesmo sendo
bem óbvia a cobiça de Ademar pelo o que não era seu, Leandro ficou renitente
para mudar de opinião enquanto pôde.
Ainda que fosse
para lá de estranho que, mostrada uma carteira nova para o vizinho, ele corresse na loja para adquirir uma igual; que aparecesse com
uma bicicleta usada, mas boa para fazer compras em bairros mais longínquos, o
rapaz arrumasse uma idêntica, com o mesmo pequeno defeito no bagageiro; que
dissesse que encomendara uma pizza de atum e presunto, fosse o vizinho, no
mesmo dia, encomendar o mesmo sabor da massa, de igual tamanho, na mesma pizzaria, Leandro era da tese de que as
pessoas não podem ser julgadas pelo o que achamos que elas sejam, e sim, pelo o
que elas realmente são...
Quando o
ex-PQD começou a enfeitar o muro de sua residência com ladrilhos diversos em
todos os sentidos – cores, tamanhos, formas, desenhos, idade – ele havia
copiado, descaradamente, a Escadaria Selarón, a famosa que dava acesso da Lapa
à Santa Teresa. Mas era admiração, não inveja.
Ademar fez o
mesmo.
Não passou
nem uma semana, e lá estava ele, assim como Leandro, assentando os ladrilhos na
parede, de maneira idêntica, até cometendo os mesmos erros, de deixar vãos
largos demais entre uma peça e outra.
Ali, o ex-paraquedista começou a notar algo de errado. Tinha que haver
uma explicação que lhe escapava à mente. Não quis, no entanto, ater-se a essas
bobagens de vizinho. Decidiu continuar no seu ritmo, e Ademar que tomasse o tal
do “chá de semancol”.
O
paraquedista aposentado precocemente confirmou a esquisitice do vizinho –
estranheza essa que teve que aceitar como sendo o que chamamos de inveja
patológica –, ao chegar aos seus ouvidos, que Ademar arrumara um pastor belga,
lindo, de manto negro, e a ele estava ensinando truques quais os de Leandro com
seus animais domésticos.
Tudo porque
os bichos de estimação do vizinho alvo de inveja viraram “atração” entre
pessoas das redondezas, que adoravam, uma vez por semana, fazer-lhe uma visita
“como quem não queria nada”. Leandro já conhecia a manha daquelas pessoas, e
convidava para entrarem no quintal para assistirem ao espetáculo. Vinham muitas
crianças, mas os adultos formavam um bom “fã-clube” também. Geralmente ocorria
na sexta-feira à tarde, mas ele não se incomodava. Passou a marcar esse como o
“dia de visitação”. Não havia exploração dos bichinhos; não eram forçados de
jeito algum, e eram bem cuidados. Quando não queriam fazer os tais truques, o
tutor os levava para dentro de casa, e que ninguém insistisse porque veriam a
face da ira do ex-militar. Seus animais eram um de seus bens mais preciosos.
Parecia que
ia bem o adestramento de Ademar com o seu cão; ele estava aprendendo realmente
alguns “salamaleques”.
O que ativou o botão da preocupação em Leandro é saber que o vizinho
não gostava de animais! Chegava a desdenhar quando o ex-paraquedista passava
com o labrador e a chihuahua para passearem nas redondezas. E ria disfarçada,
mas ironicamente, ao ver o “frajolinha” se equilibrando no skate, quando o
ex-militar trazia seu gato para a frente
do portão, sob sua total vigilância.
Como um cara que não curtia os animais poderia arrumar um cão e
adestrá-lo? Se o cachorro deixasse de ter graça, o que ele faria depois?
Jogaria o pobre cão na rua, para ajudar na triste estatística de mais abandono
de animais sem perspectiva de adoção?
Decretado
mentalmente: “ADEMAR É INVEJOSO!”
Duraram
pouco as façanhas de Ademar com seu cachorro, como previra Leandro. Não
suportou as intempéries que a criação de qualquer ser vivo requer. Como não
gostasse de animais, os problemas se fizeram maiores. Livrou-se dele, doando a
uma senhora que abrigava muitos animais, e que tinha situação financeira para
arcar com os custos. Sorte do cachorro que, mesmo tendo que dividir o espaço
com outros, recebia comida, cuidados médicos, carinho e atenção, algo que não
via no seu “lar” anterior.
A máxima da
inveja ainda estava por vir, quando o episódio do cão há muito havia passado. Leandro
jamais esperaria que a famosa “Lei de Murphy” se cumpriria na trajetória de
vida de Ademar e seu “olho-grande”.
Uma vez ao
ano, o ex-paraquedista cumpria com sua “hibernação” particular, que se
constituía em ir acampar na Praia do Sono, em Paraty, RJ. Acreditava que
voltava sempre uma pessoa melhor, quando passava aqueles três dias de retiro,
tendo que cozinhar sua comida, lavar roupa, e tudo o mais que compete à vida em
civilização, estando ele totalmente só.
Ia preparado como se nunca mais fosse ter contato com a cidade
novamente. Por isso, escolhia o período de inverno, que quase ninguém queria
aventurar-se em um lugar ermo, ainda mais solitário. Quando ele pensava em
isolamento, era um afastamento social para valer.
Deixava
todo o seu procedimento por escrito com a namorada, os pontos que ele poderia
ser encontrado caso acontecesse “o pior”, e ele não retornasse nos cinco dias
previstos – um dia para ir; um dia para voltar –, ração com duração de seis
meses para ser dada aos seus animais no período de ausência. A namorada ficava
meio confusa com tanta precaução, mas entendia a retórica: “Vai que me acontece
o pior?”, insistia ele.
Na mochila esverdeada, assemelhando-se ao seu uniforme do Exército da
Brigada dos PQDs, levava o material de sobrevivência: comidas em lata, abridor
de lata, roupas largas, tênis de cano alto, casacos, jaquetas, colete
salva-vidas, canivete, repelente, copos e sacolas de papel (para ser facilmente
dissolvido na natureza), lanternas com pilhas que só colocava quando chegava lá,
colchonete, isqueiro, lamparina e querosene. Na bolsa de viagem, carregava a
barraca. Nada de celular ou algo que o lembrasse remotamente de comunicação.
Ia-se ele tão liberto, que ninguém ousava dizer que a sua jornada
poderia ser perigosa. Ele conhecia todas as técnicas, e fazia isso todos os
anos, há mais de quinze.
Naquele ano, aconteceu o mesmo que nos outros: quando retornara, a
sensação de melhoria enquanto ser humano estava nele, impregnada como a maresia
em sua roupa de aventureiro.
Os animais o farejaram longamente, com ar de saudade, enquanto a
namorada separava roupas para ele tomar um banho acolhedor. Era bom estar de
volta, dando mais valor ainda às coisas que mereciam valor.
Lá se foi,
uma semana depois, o invejoso Ademar para a mesma Praia do Sono, levando seus
apetrechos de acampamento, iguais aos de Leandro, descobrindo onde o
ex-paraquedista tinha comprado todo o material
necessário.
Sua motivação
não era nada sublime; não queria descobrir-se um grande ser
Ao chegar, sentira que aquele fim de semana não seria favorável: para
começar, o mar estava de ressaca.
Não armou a barraca porque não sabia; mal e mal comeu as salsichas de
uma das latinhas; não dormiu direito porque se atrapalhou ao usar o repelente,
tendo alguns mosquitos a importuná-lo (também por causa do frio, já que ficou
exposto à friagem noturna); sentiu tontura pois seu organismo estava acostumado
ao horário certo de almoço e ele ingerira pouco sal. Estava se sentindo
abandonado, perdido, e nem para levar o celular...
Entrando no
mar, tinha consciência do que estava fazendo, ainda que ele acreditasse que
poderia se dar bem. “Se Leandro conseguiu, eu também consigo! ”
Não se
considerava invejoso.
Se alguém o
forçasse a admitir alguma falha de caráter, se definiria como
arrogante.
Não conseguia conceber, em sua mente pequena, que alguém como Leandro
pudesse ser tão capaz. Viera da pobreza; como poderia estar morando num dos
bairros mais nobres da cidade? Ademar conhecera pessoas pobres que obtiveram
vitória. Vitória financeira, mas isso não era tudo.
Na visão de Ademar, ter arrogância era característica de pessoa
de posse; inveja, coisa de gente
miserável, que não tem a fartura de uma grande mesa no jantar.
Mas ele não
levara em consideração que seu sentimento real era a inveja.
Inveja... Não das posses materiais do outro, já que tinha em menor
quantidade que ele próprio. Mas a posse no sentido de possibilidade.
Era a força, o carisma, a perseverança que Leandro trazia no olhar e
em sua vida. O ex-paraquedista fazia acreditar que era possível. Ele ajeitava a
situação, era o cara do bairro.
Tudo isso deixava Ademar transtornado. “Um cara como Leandro não
poderia nem estar aqui! ” Mas ele estava.
Ele não
sabia precisar quando tudo começou, mas a falsa arrogância o enganara: fora o
bichinho da inveja que crescera dentro dele, e Ademar agora estava colhendo os
seus maus frutos...
Encontrava mais e mais a profundeza daquelas águas, com a correnteza
que o impelia a prosseguir.
Não se importou nada quando os pulmões começaram a ser preenchidos do
líquido esverdeado misturado com as folhas do local.
Antes de se despedir completamente de nosso mundo, Ademar pensou, ele
que não sabia nadar muito bem: “Que vacilo o meu! Comprei tudo igual ao dele.
Menos o colete...”
Para ler todos os contos antecipadamente, basta clicar neste link do site Mary Difatto >>>> http://www.marydifatto.com.br/2019/01/imprevistos-de-uma-viagem-cotidiana.html
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