Conto de hoje: A Doçura da Cana-de-Açúcar
Da antologia IMPREVISTOS DE UMA VIAGEM COTIDIANA,
de Mary Difatto.
Toda quinta-feira, uma nova publicação.
Bons "imprevistos de viagem"!
A DOÇURA DA CANA-DE-AÇÚCAR
Seu Joaquim era
um dos daqueles senhores de cabeça branca, aposentado e de bem com a vida, do
tipo proseador, que se sentava na frente do portão com sua cadeira vermelha,
que ganhara de uma distribuidora de bebidas. Nem retirara o logotipo: trazia um
orgulho de ter conquistado a generosidade de uma grande empresa.
Aquele
senhor comprara seis terrenos, um ao lado do outro, num bairro simples da
Baixada Fluminense, há mais ou menos 40 anos. Resolveu murá-los como se fossem
um, e construiu uma imensa casa de laje, com cobertura de telha de barro para o
terraço aludindo, em parte, aos tempos feudais. Era o encanto do lugar.
Admitia que
tinha sido muita sorte conseguir aqueles terrenos por um preço módico. Mais
cinco anos, não compraria nem um: o bairro tinha chamado a atenção pela
descoberta de uma pequena e linda cachoeira escondida atrás de um morro
inóspito. Desbravado o morro, surgiu a cachoeira. Logo o bairro se tornara
parte de uma espécie de mapa turístico da cidade. Logo todos os terrenos
tomaram valores exorbitantes, que seriam difíceis para a compra, sobretudo para
um trabalhador braçal dos tempos do “mato”, onde o que se via eram apenas
plantações e ele, constituinte de um grupo grande de roçadores contratados (ou
agregados, como sugeriam alguns moradores), nem nutriria tamanha pretensão.
Sua “mansão”
fora construída com o decorrer dos anos.
Reaproveitou
muito material jogado no lixo, compactando as latas e os papelões, quando não
era comum esse tipo de prática. Andava longe, vendendo para fábricas que
gostavam de usar materiais reciclados, quando nem o termo ainda era usual.
Sua mulher lavava e passava roupa para as “madames”, mulheres de
bairros mais evoluídos cujos maridos conquistaram emprego de carteira assinada.
Seus filhos comiam “o que tinha”. Muito comum a mãe informar às
crianças – elas que volta e meia reclamavam do rango extremamente simples (angu
ou feijão, arroz e farinha ou picadinho de abobrinha no arroz ou couve manteiga
dentro do feijão, que os pais chamavam pomposamente de “feijoada” ou,
simplesmente, arroz manchado de salsicha) – que deveriam comer com gosto,
porque era “o que tinha” na mesa para aquele
dia.
O sacrifício tinha objetivo. Para a aquisição dos seis terrenos e
construção nele de uma bela propriedade, só mesmo com muita renúncia, algo
complicado para crianças entenderem quando a barriga pede maior ingestão de
alimentos.
Sendo proprietário de uma junção de terrenos que formava um tamanho
descomunal para a tradição atual do lugar, e com a casa tão grande e imponente,
Seu Joaquim obteve certa notoriedade, de pessoas se referirem a ele como o
“fazendeiro”, algo que repudiava; ninguém usava o epíteto perto do homem do
cabelo branco sem fazê-lo perder o bom humor.
Ele adorava
plantas!
Possuindo Seu
Joaquim sua micro
quinta, como repetia imitando o pai português, que se referia a qualquer área de dimensões um tanto maiores
como “quinta”, resolveu preencher o espaço com muitas flores de variados tipos
– o seu forte: chegava a vender buquês encomendados para eventos diversos. Mas
passou a ter também, um canavial – o seu fraco: ele não costumava tirar as
folhas secas, logo enfeava boa parte de sua tão elogiada propriedade.
Lembrança da
infância, cana de açúcar...
Nos tempos
do roçado, bem menino, Quim, como era chamado, corria solto entre as muitas
touceiras do antigo sítio onde morava com os
pais.
Tanto o pai quanto a mãe eram portugueses, e gente bem humilde, que
passavam à larga distância da pecha injusta que os brasileiros assimilavam para
os lusitanos, de que uma vez no Brasil, enriquecem pelo “pão-durismo”, ou seja,
explorando seus empregados, pagando-lhes salário de fome. Vendo seus pais tão
sofridos, trabalhando de sol a sol para conquistarem um pouco só de alimento e
conforto, Seu Joaquim chegara à conclusão, há muito, que uma das piores coisas
no mundo é o pré-conceito sobre qualquer assunto. Por isso, o repúdio à
definição “fazendeiro” que lhe davam às escondidas.
O garoto
Quim entendia a vida sob o prisma de um canavial, quase que literalmente.
Suas mãos
calejadas davam, para a máxima popular, o combustível de resposta idônea sobre
o não valor de muitas pessoas para as coisas que possuíam com facilidade: “É
porque nunca precisaram encarar uma enxada...” Seu Joaquim traduzia mentalmente
para “foice”.
Ele alcançou o final da época da exploração dos bens renováveis, nos
quais a Baixada era rica, sobretudo os vegetais, como: laranja, café, abóbora e
a cana-de- açúcar.
No sítio
onde nascera e chegara à puberdade, Quim tinha contato direto com a “planta dos
doces”, como se referia quando era pequeno. Olhava o engenho com amor, seus
sons, a rotina de subordinados que levavam amarrados enormes contendo o que ele
jurava que fossem dezenas de touceiras juntas, para serem moídas.
Recordaria por
toda a vida a imagem daquela engenhoca.
Era formada
por um banco de madeira, três grandiosas toras redondas paralelas (ele não
sabia dizer qual era a árvore que tinha um tronco tão volumoso), que eram
acionadas por um vergalhão, com ponta em formato de parafuso, também
gigantesco, exatamente enganchado na tora do meio, que “comandava” as outras.
Sobre as toras, vinha uma “mesa” para apoiar uma espécie de “hélice” de avião.
Era essa hélice que dava condições para acionar a moenda.
Para o
processo funcionar, eram necessários, no mínimo, seis subordinados: dois para
trazer, dois para girar a hélice e dois para aparar o caldo (já naquela época
existiam aparelhos mais modernos, mas aquele sítio em particular, era um tanto
retrógrado).
Quim
adorava assistir àquela rotina. Ainda mais que ele era quase que
invariavelmente o primeiro a provar da garapa de cada dia.
Aquilo era um comércio como outro qualquer; os empregados mesmo não
tinham permissão para usar a “cana boa”, como se referiam ao resultado final,
quando o caldo era coado, pronto para a negociação.
Os subordinados
se contentavam apenas com o melaço, uma espécie de “cana sem serventia”, quando
do vegetal triturado não saía mais nada, como acreditavam seus superiores. Mas
a vida sempre lhes sorria porque sobrava sempre um restinho bom, que dava para
adoçar o café da manhã...
A maioria
da cana, porém, era vendida “bruta”: só cortavam as folhas. Dali formavam os
amarrados, sendo negociadas geralmente em terra
brasilis, embora a fama de grande produtora de agricultura da Baixada,
tivesse chegado também ao estrangeiro.
Mais da metade do tempo Quim ficava junto com os pais, foiceando com
ardor aquela plantação sem fim.
Não havia
tristeza para o menino: gostava demais de tudo relativo àquele vegetal! Cortava
a casca da cana com os dentes, de tão fortes que eram. Chupava cana até ficar
“bêbado”. Escondido, naturalmente, porque se o capataz visse (eles ainda usavam
termos dos tempos da escravidão), ele levaria uma coça.
Seu primeiro
beijo foi atrás de uma touceira; sua primeira vez de homem também, com uma
menina da idade dele, precocemente, aos onze
anos.
Quando
aprendeu a ler, escolheu um grupo de touceiras enormes, as mais afastadas, que
ele tinha pego carinho, apesar de seus superiores não as quererem lá – não
prestavam para comércio porque estavam aguadas pelo excesso de chuva, mas a
toleravam porque eram elas que serviam de barreira para as enchentes – para
contar uma das muitas histórias de um livro da escola. O garoto as tratava como gente.
A Baixada já estava em declínio nesse tipo de transação comercial,
quando os pais de Quim, ele na adolescência, conseguiram comprar um terreninho
perto da estrada principal, com pretensões de terem sua própria plantação.
Não
conseguiram ganhar dinheiro. Acabou que o que plantavam se configurou em
agricultura de subsistência; mal dava para comer.
Um
certo dinheiro que conseguiram fora com a venda de galinhas e seus ovos. Filho
único, em alguns anos, se tornou órfão.
Sorte que estava prestes a se casar, e com a mulher, conseguira
manter-se digno e firme em seus propósitos de progredir.
Como herdara a casa dos pais, se estabelecera ali logo no início do
casamento. Não estando contente com aquele pouco montante do comércio dos
animais, começou a cata de latas e papelões, e a esposa na labuta de lavagem e
passagem de roupa.
A sorte
volta e meia lhe sorria, e sendo assim, caíra em suas mãos os tais seis
terrenos juntos que comprara. Como se diz: “A preço de banana”.
Era em nome
da felicidade que vivenciara no antigo sítio, que Seu Joaquim não permitia que
falassem mal do seu canavial. Pequeno, não servia para venda, apenas para uso
próprio, feio, que assustava com o seu “uivo” quando o vento soprava por entre
as touceiras, mas era a lembrança do seu passado que se fazia presente.
Entretanto, nem
mesmo muita sorte resolve problemas de ordem natural.
Há um bom
tempo que a vizinhança começou a importunar Seu Joaquim não pelo fato do
canavial atrapalhar a visão com sua feiura quando alguém visitava sua
propriedade. Muita gente começou a reclamar de cobras que estavam se juntando
entre as touceiras.
Estando ele
sentado à tarde em seu portão estilo fazenda, a vizinha mais antiga desabafou:
–
O senhor tem que dar um jeito nisso! Acaba com essa plantação de cana!
As cobras estão rastejando lá para a minha casa, dando um susto danado na gente...
Vai que são venenosas? – para reforçar o seu pedido: – Não sou só eu, não...
Muita gente está falando a mesma coisa!...
O homem da
cabeça branca a olhou de esguelha, um tanto pensativo:
–
Mas quem garante que saem do canavial, vizinha? – perguntou ele,
simplesmente.
–
Plantação de cana junta cobra... Só pode ser daí! O senhor é o único
que planta isso...
Contrariado,
mas com senso de justiça, respondeu ele:
– Vou dar uma olhada amanhã.
Fique tranquila!
Aliviada, a
vizinha apertou suas mãos, em sinal de agradecimento:
–
O senhor acaba de tirar um peso da minha cabeça! Tenho medo que haja um
ninho delas. Não quero nem pensar...
Cumpriu com o que prometera,
indo logo cedo ver de perto se havia realmente lógica no que estavam comentando
os muitos vizinhos.
No sítio onde crescera, as
cobras eram uma constante. Mas como o trabalho ocorria diariamente, elas não
tinham tempo de formar “família”.
Houve uma, a das maiores que já vira – cerca de 1m e meio de
comprimento – que um dos capatazes matara à toa. Quando o líder a avistara,
amarrada na ponta de um bambu, morta a tiro, afirmou bastante injuriado: “Mas
era uma jiboia... Não é venenosa! Era só levar para Tinguá!...”
Seu
Joaquim fez questão de olhar uma a uma as touceiras, roçando com a velha foice,
muito bem equipado de roupa grossa, luvas e coturno estilo militar.
Estava
desistindo de procurar, até conseguir discernir o ser longilíneo se enfiando na
“mata”. “
–
Agora sei quem você é! – falou risonho Seu Joaquim, para a criatura
conhecida.
Estivesse
ele enganado, não seria cobra d’água, mas o homem de cabeça branca não estava:
era uma cobra d’água, das de barriga amarela.
–
Vocês todas são tão mansinhas, chegam ser tímidas... – definiu a
“amiga”, com os olhos entumecidos, perto das lágrimas de emoção.
– Tem muitas de vocês aí, é?
Pelo o que
ele pôde averiguar, adentrando com a foice o restante da plantação, só se
alocaram três pequenas cobras d’água que, ao vê-lo, rastejaram lépidas e
atarantadas.
–
Podem ficar pelo tempo que quiserem! Não vou acabar nunca com a moradia
de vocês! A não ser que vocês fossem venenosas... Mas vocês não são!... Podem
ficar!
Repentinamente,
Seu Joaquim ficou melancólico.
Ele
conhecia bem a dinâmica desse tipo de cobra: aparecia em profusão no período
dos temporais, principalmente no verão. Depois, sumiam.
No íntimo
inconfessável, Seu Joaquim bem que gostou de imaginar que seu minúsculo canavial tinha quilate para abrigar cobras. Símbolo de alta
produção. Com as “meninas” indo embora, sua plantação voltou a ser apenas
comum.
Como não
bastasse, cobras pertenciam ao “pacote de lembranças” do trabalho árduo e
prazeroso dos seus tempos de garoto. Algo que recordava constantemente.
Deu um estalo
em Seu Joaquim, embalado por uma conveniente constatação:
–
Ah, sem problemas! Vocês só foram dar uma voltinha... Vão retornar no
próximo verão, né? Vou estar esperando...
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