Até Amanhã! é o primeiro conto da antologia do livro IMPREVISTOS DE UMA VIAGEM COTIDIANA, de Mary Difatto.
Toda semana será publicado um.
Bons "imprevistos de viagem"!
ATÉ AMANHÃ!
Tinha saído
despretensiosamente, apenas na alegria simples de estar fora de casa.
Entretanto,
alguém conhecido a vendo daquele jeito, tão faceira, cheia de adornos e bocas,
diria que iria a um coquetel muito importante, e que até ela mesma se tornara
uma “pessoa importante”.
Mas, não.
Nelise era uma moça do cotidiano, aquela que pega a bolsa,
enxerga apetrechos de sobreviver lá dentro, e vai à luta.
Trabalhava de dia; era atendente de estacionamento.
Chegava tarde o suficiente para o filhinho de três anos dizer-lhe “boa-noite”.
Separada do
marido, casou-se muito cedo, e nada de vir filhos. Só após oito anos de união,
é que o ventre lhe entregou o garotinho dos olhos negros mais expressivos e
lindos que já vislumbrara na vida.
Com a vinda do bebê, o casamento desandou, naquela
incógnita que os relacionamentos trazem muitas vezes intrinsicamente no Por quê?
Em um ano, os dois decidiram se separar, e o agora ex-marido, nem se
preocupara em ficar com a guarda da criança, achando fácil e mais leve aceitar
as condições de Nelise, de vê-lo nos fins de semana.
Sem brigas, sem
choros. Apenas um casamento que não dera certo.
Naquela tarde de domingo, a
atendente de estacionamento, aproveitando o dia que o filho estaria na adequada
companhia do pai – um pai zeloso, diga-se de passagem –, colocou sua saia mais
elegante, uma de cor preta que valorizava as pernas sem sensualizá-las, uma
blusa body branca de mangas longas,
com o decote ideal, ressaltando os seios
pequeninos com sutileza.
Já a bolsa, paga às prestações, era creme envernizada, com
alça fina que caía sobre a cintura e costumava ser um artigo de cobiça das
conhecidas.
Com o sapato fechado, de salto alto, preto, e uma echarpe
florida de verde água pousando no braço esquerdo, sabia que estava realmente vestida.
Brincos em concha madrepérola, pulseira com um pingente verde bandeira,
colar trançado em seis voltas caindo com minúsculas folhas sobre a blusa, batom
vermelho esmaecido, delineador nos olhos marcando o suficiente para provar que
o usava, formavam uma aparência de requinte sem que ela fosse requintada.
Uma
mulher assim se sentia livre para ser ou ter o que quisesse. Estava saída, afinal. Para onde ir?
Como peixe que procura o mar,
Nelise rumou-se a uma concessionária dentro
de um shopping para cobiçar os
carros novos.
Não tinha veículo próprio, portanto, nem velho, muito menos novo.
Dirigia magnificamente bem, mas era obrigada a usar o de
outras pessoas, que a exploravam quando queriam voltar bêbadas de algum evento,
e não poderiam estar ao volante. Ela, como não ingeria nenhuma espécie de
bebida alcoólica, se sentia plena de satisfação por poder curtir a direção
despojada nas ruas menos turbulentas da noite.
–
Gostou de algum? – um vendedor sorridente se aproximou.
– Adorei todos! – respondeu de pronto.
–
Por qual a senhora se interessou mais? – o sorriso abriu-se com
dimensões impensáveis. – Como pode ver, temos muitas opções!
– Eu, por mim, levaria todos,
porque adorei todos! – sorriu ela também.
–Então,
leve todos! – enfatizou o vendedor,
formando com ela já um envolvimento de risada entre amigos.
– Mas não posso...
– Por quê?
– Estão todos acima do meu orçamento...
– Orçamento, senhora?
–É, orçamento... – resolveu parar com o teatro de rica, que ela inconscientemente havia criado – Trabalho num
estacionamento. Sou secretária lá, e
faço apontamentos de entrada e saída de veículos. Vejo muitos carros, mas nenhum é meu...
Sem
notar, estava com lágrimas nos olhos que, milagrosamente, conseguiu ocultar do
vendedor.
– E olha que eu dirijo bem! –
ressaltou, como se esse fato tivesse importância.
O sorriso do vendedor já estava esmaecido. Chegou até a
rompância, o seu afastar repentino:
–
A senhora poderia me dar licença? É que há muitos clientes
que gostariam de
comprar um automóvel, sim?
Ela ainda ficou
parada ali, sem saber o que fazer.
Foi para a
praça de alimentação, sentou-se amargurada numa das mesas de madeira, olhando
sequiosa para um prato de batatas fritas da mesa ao lado. Descobriu-se com
fome, logo, pedindo o mesmo petisco na lanchonete:
– Uma porção de batata frita,
por favor!
– Primeiro tem que pagar no caixa!
– Claro, claro, que bobeada a minha...
A moça do
caixa em questão, com cara de poucos amigos:
– É dinheiro ou cartão, senhora?
– Cartão.
– De crédito ou de débito?
– De débito.
Sem muito
pensar, sacou do cartão para colocá-lo na máquina leitora.
– Mas isso é vale-alimentação,
senhora! – assustou-se a moça do caixa.
–
É de débito, e aqui é lugar onde se serve alimentos!... – explicou-se
envergonhada Nelise.
– Não, não, só vale-refeição é
aceito! A senhora não sabia disso?
–
Eu compro direto em supermercado com este aqui... Compro lanche e tudo!
– Sim, quando é supermercado,
que tem também lanchonete... E aqui não é supermercado!...
– enfatizou, com ares de superioridade, a moça do caixa.
– Então,
desculpe. Eu me confundi...
A atendente do estacionamento retirou-se como se fosse uma constante
não ter seu cartão aceito. Por dentro, entretanto, estava paralisada e doída.
Como era ruim não poder comer quando sentia fome!
Foi paquerar os sapatos scarpin de salto alto, uma de suas loucuras, e morreu de
vontade de entrar na loja para perguntar o preço.
Nem precisou.
–
A senhora gostaria de dar uma olhadinha, sem compromisso? – uma moça
bem maquiada se aproximou sorrateira, sem a percepção de Nelise.
–
Só estou olhando mesmo...
–
Fique à vontade!
A
vendedora ficou olhando de longe, com um sorriso labial receptivo. No menor
gesto de Nelise, viera correndo:
–
Esse sapato aqui custa quanto?
–
Está na promoção. Boa escolha!
–
O preço, qual é? – insistiu.
– Como eu disse, está na
promoção. A senhora pode pagar à vista ou no cartão, de crédito ou débito.
Aceitamos todos os cartões e várias formas de pagamento. Menos cheque.
–
O preço... – a ainda não-cliente começava a se abespinhar.
–
No preço real está saindo a quatrocentos, mas como está na promoção,
cai para trezentos e oitenta e nove e noventa. E se pagar à vista, vai para a
senhora por trezentos e oitenta e cinco e noventa. É imperdível!
–
Mas está muito caro!
–
Está todo mundo comprando! São os últimos pares!
–
O caso é que, a bem da verdade, não estou com dinheiro aqui...
–
Pode pagar no cartão!
–
O único que eu tenho é um vale-alimentação. Serve? – perguntou ironicamente.
– Ah...
Aquela interjeição monossilábica, resumiu todo o desapontamento da vendedora.
Com a
explicação de que deveria atender uma outra moça que acabava de entrar
–
que nem bem vestida estava, julgara a vendedora, mas poderia ter
dinheiro –, afastou-se a funcionária.
“Eu
tinha dito desde o início que só estava olhando...”, refletiu Nelise. Foi para
o subsolo.
Sentou-se num
banquinho improvisado de alguém cansado anterior a ela, e ficou observando os
carros, novos ou não, bonitos ou não, de boa marca ou não.
Ali era o
lugar mais adequado que ela encontrou para permanecer. Com fome, sem dinheiro,
se sentindo só, repentinamente com saudade do filho, imaginando que ele já
estaria para chegar em casa. A avó do menino, a mãe dela, o receberia e lhe
daria banho. Quando ela retornasse, o pequenino a envolveria nos bracinhos
felizes e limpos.
Ela já estava bastante suada, e
mais da metade da elegância havia se perdido. Em contraste com seu estado de
espírito, que se encontrava totalmente angustiado.
De repente, uma
buzina.
– Taí, menina?!
A moça
olhou, e se apercebera que um carro magnífico e familiar, se aproximara.
– Oi, Seu Renato! Eu não sabia
que o senhor estava aqui...
Era um dos advogados, que
quase todos os dias, levava seu automóvel invejável para estacionar no local
dela de trabalho.
Um senhor muito dócil, que
labutava firmemente, a despeito da idade avançada e estar há muito aposentado.
Cara honrado, que todos diziam ser bom marido, bom pai,
bom avô, bom profissional. E bom cliente,
isso ela poderia afirmar.
–
Minha netinha caçula cismou com uma dessas pulseiras, que quando
esticam, viram cinto. Eu nunca tinha visto isso, mas como ela me garantiu que
aqui eu encontraria, vim comprar. Até que achei engraçadinha, e útil...Tudo que
eles pedem eu faço; quem mandou eu ser avô coruja? – sorriu tão amorosamente,
que Nelise se sentiu como se fosse da família daquele grande homem. – Já estou
indo embora. Quer uma carona?
Constrangida,
Nelise disse apenas:
– Não, muito obrigada! Vou
ficar mais um tempinho aqui...
Ele a encarou por dois
segundos, um tanto intrigado que uma moça ainda jovem e bonita, permanecesse
parada em um estacionamento tão isolada.
Riu-se internamente ao
imaginar, no seu coração generoso, que ela esperasse alguém, e esse alguém só
estivesse ligeiramente atrasado.
– Até amanhã!
Vamos nos ver lá no seu trabalho... – sorriu – Tchau! – acenou. Nelise acenou de
volta.
Sem ter muita opção, resolveu
formar pensamento sobre o que ocorrera por todo o tempo que se encontrara no shopping.
A única
pessoa que a tratara genuinamente bem, era um senhor riquíssimo, um sabedor que
as vestes elegantes, pertenciam a uma pessoa simples, alguém apenas cismado em se arrumar melhor para um
dia de domingo. Ficou pensativa do porquê aquele domingo de passeio, ter esse
rumo bizarro.
Aplumou-se
imediatamente.
Era hora de voltar ao lar, e sentir os bracinhos do filho
que a abraçariam com amor, pedindo para ela dar rodopio.
Voltaria,
curtiria bastante aquele domingo que ainda tinha pela frente.
Mais tarde, quando já deitada em sua cama de solteira,
repassou todos os afazeres que teria no dia seguinte.
Fechou o
cenho revoltada, ao se dar conta que não agiria nada diferente de todos os
atendentes que encontrara naquele shopping
traumático: “O senhor pode pagar com cartão. Aproveite a promoção! Deixando
o carro por duas horas, trinta reais. Por aí o senhor não vai encontrar nada
melhor...”; “Não aceitamos cheque. Está ali na placa, pode conferir!”;
“Funcionamos 24 horas, mas a partir das vinte horas, o preço muda. Senhor, não
insista! Já são vinte e quinze! O valor muda, já expliquei!”
Iria ficar muito tempo numa angústia profunda, se não pousasse no
pensamento, um conforto mental:
“Pelo
menos” – concluiu –, “eu não estrago o domingo de ninguém...” Virou-se
satisfeita, e dormiu o sono dos justos.
Quem quiser ler todos antecipadamente, poderá acessar o link, que está no site Mary Difatto: http://www.marydifatto.com.br/2019/01/imprevistos-de-uma-viagem-cotidiana.html
(Imagem:
Nenhum comentário:
Postar um comentário