PARA QUEM AMA GATOS

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quinta-feira, 27 de junho de 2019

Até Amanhã!





Até Amanhã! é o primeiro conto da antologia do livro IMPREVISTOS DE UMA VIAGEM COTIDIANA, de Mary Difatto.
Toda semana será publicado um.
 Bons "imprevistos de viagem"!



                                               ATÉ AMANHÃ!

Tinha saído despretensiosamente, apenas na alegria simples de estar fora de casa.
        Entretanto, alguém conhecido a vendo daquele jeito, tão faceira, cheia de adornos e bocas, diria que iria a um coquetel muito importante, e que até ela mesma se tornara uma “pessoa importante”.
Mas, não.
        Nelise era uma moça do cotidiano, aquela que pega a bolsa, enxerga apetrechos de sobreviver lá dentro, e vai à luta.
        Trabalhava de dia; era atendente de estacionamento. Chegava tarde o suficiente para o filhinho de três anos dizer-lhe “boa-noite”.
       Separada do marido, casou-se muito cedo, e nada de vir filhos. Só após oito anos de união, é que o ventre lhe entregou o garotinho dos olhos negros mais expressivos e lindos que já vislumbrara na vida.
        Com a vinda do bebê, o casamento desandou, naquela incógnita que os relacionamentos trazem muitas vezes intrinsicamente no Por quê?
Em um ano, os dois decidiram se separar, e o agora ex-marido, nem se preocupara em ficar com a guarda da criança, achando fácil e mais leve aceitar as condições de Nelise, de vê-lo nos fins de semana.
Sem brigas, sem choros. Apenas um casamento que não dera certo.
Naquela tarde de domingo, a atendente de estacionamento, aproveitando o dia que o filho estaria na adequada companhia do pai – um pai zeloso, diga-se de passagem –, colocou sua saia mais elegante, uma de cor preta que valorizava as pernas sem sensualizá-las, uma blusa body branca de mangas longas, com  o decote ideal, ressaltando os seios pequeninos com sutileza.
Já a bolsa, paga às prestações, era creme envernizada, com alça fina que caía sobre a cintura e costumava ser um artigo de cobiça das conhecidas.
Com o sapato fechado, de salto alto, preto, e uma echarpe florida de verde água pousando no braço esquerdo, sabia que estava realmente vestida.
Brincos em concha madrepérola, pulseira com um pingente verde bandeira, colar trançado em seis voltas caindo com minúsculas folhas sobre a blusa, batom vermelho esmaecido, delineador nos olhos marcando o suficiente para provar que o usava, formavam uma aparência de requinte sem que ela fosse requintada.
Uma mulher assim se sentia livre para ser ou ter o que quisesse. Estava saída, afinal. Para onde ir?
       Como peixe que procura o mar, Nelise rumou-se a uma concessionária dentro  de um shopping para cobiçar os carros novos.
Não tinha veículo próprio, portanto, nem velho, muito menos novo. Dirigia magnificamente bem,  mas  era  obrigada   a usar o de outras pessoas, que exploravam quando queriam voltar bêbadas de algum evento, e não poderiam estar ao volante. Ela, como não ingeria nenhuma espécie de bebida alcoólica, se sentia plena de satisfação por poder curtir a direção despojada nas ruas menos turbulentas da noite.
  Gostou de algum? – um vendedor sorridente se aproximou.
  Adorei todos! – respondeu de pronto.
  Por qual a senhora se interessou mais? – o sorriso abriu-se com dimensões impensáveis. – Como pode ver, temos muitas opções!
  Eu, por mim, levaria todos, porque adorei todos! – sorriu ela também.
–Então, leve todos! – enfatizou o vendedor, formando com ela já um envolvimento de risada entre amigos.
  Mas não posso...
  Por quê?
  Estão todos acima do meu orçamento...
  Orçamento, senhora?
    –É, orçamento... – resolveu parar com o teatro de rica, que ela  inconscientemente havia criado – Trabalho num estacionamento. Sou secretária lá,  e faço apontamentos de entrada e saída de veículos. Vejo muitos carros, mas nenhum é meu...
 Sem notar, estava com lágrimas nos olhos que, milagrosamente, conseguiu ocultar do vendedor.
  E olha que eu dirijo bem! – ressaltou, como se esse fato tivesse importância.
O sorriso do vendedor já estava esmaecido. Chegou até a rompância, o seu afastar repentino:
  A senhora poderia me dar licença? É que há muitos clientes que gostariam de
comprar um automóvel, sim?
Ela ainda ficou parada ali, sem saber o que fazer.
Foi para a praça de alimentação, sentou-se amargurada numa das mesas de madeira, olhando sequiosa para um prato de batatas fritas da mesa ao lado. Descobriu-se com fome, logo, pedindo o mesmo petisco na lanchonete:
  Uma porção de batata frita, por favor!
  Primeiro tem que pagar no caixa!
  Claro, claro, que bobeada a minha...
A moça do caixa em questão, com cara de poucos amigos:
  É dinheiro ou cartão, senhora?
  Cartão.
  De crédito ou de débito?
  De débito.
Sem muito pensar, sacou do cartão para colocá-lo na máquina leitora.
  Mas isso é vale-alimentação, senhora! – assustou-se a moça do caixa.
    É de débito, e aqui é lugar onde se serve alimentos!... – explicou-se envergonhada Nelise.
  Não, não, só vale-refeição é aceito! A senhora não sabia disso?
   –   Eu compro direto em supermercado com este aqui... Compro lanche e tudo!
  Sim, quando é supermercado, que tem também lanchonete... E aqui não é supermercado!... – enfatizou, com ares de superioridade, a moça do caixa.
– Então, desculpe. Eu me confundi...
A atendente do estacionamento retirou-se como se fosse uma constante não ter seu cartão aceito. Por dentro, entretanto, estava paralisada e doída. Como era ruim não poder comer quando sentia fome!
Foi paquerar os sapatos scarpin de salto alto, uma de suas loucuras, e morreu de vontade de entrar na loja para perguntar o preço.
Nem precisou.
         A senhora gostaria de dar uma olhadinha, sem compromisso? – uma moça bem maquiada se aproximou sorrateira, sem a percepção de Nelise.
      Só estou olhando mesmo...
      Fique à vontade!
A vendedora ficou olhando de longe, com um sorriso labial receptivo. No menor gesto de Nelise, viera correndo:
      Esse sapato aqui custa quanto?
      Está na promoção. Boa escolha!
      O preço, qual é? – insistiu.
      Como eu disse, está na promoção. A senhora pode pagar à vista ou no cartão, de crédito ou débito. Aceitamos todos os cartões e várias formas de pagamento. Menos cheque.
      O preço... – a ainda não-cliente começava a se abespinhar.
       –        No preço real está saindo a quatrocentos, mas como está na promoção, cai para trezentos e oitenta e nove e noventa. E se pagar à vista, vai para a senhora por trezentos e oitenta e cinco e noventa. É imperdível!
      Mas está muito caro!
      Está todo mundo comprando! São os últimos pares!
      O caso é que, a bem da verdade, não estou com dinheiro aqui...
      Pode pagar no cartão!
        –               O único que eu tenho é um vale-alimentação. Serve? – perguntou ironicamente.
   – Ah...
          Aquela    interjeição    monossilábica,    resumiu    todo    o    desapontamento    da vendedora.
   Com a explicação de que deveria atender uma outra moça que acabava de entrar
         que nem bem vestida estava, julgara a vendedora, mas poderia ter dinheiro –, afastou-se a funcionária.
  “Eu tinha dito desde o início que só estava olhando...”, refletiu Nelise.   Foi para o subsolo.
  Sentou-se num banquinho improvisado de alguém cansado anterior a ela, e ficou observando os carros, novos ou não, bonitos ou não, de boa marca ou não.
Ali era o lugar mais adequado que ela encontrou para permanecer. Com fome, sem dinheiro, se sentindo só, repentinamente com saudade do filho, imaginando que ele já estaria para chegar em casa. A avó do menino, a mãe dela, o receberia e lhe daria banho. Quando ela retornasse, o pequenino a envolveria nos bracinhos felizes e limpos.
     Ela já estava bastante suada, e mais da metade da elegância havia se perdido. Em contraste com seu estado de espírito, que se encontrava totalmente angustiado.
De repente, uma buzina.
Taí, menina?!
A moça olhou, e se apercebera que um carro magnífico e familiar, se aproximara.
  Oi, Seu Renato! Eu não sabia que o senhor estava aqui...
Era um dos advogados, que quase todos os dias, levava seu automóvel invejável para estacionar no local dela de trabalho.
Um senhor muito dócil, que labutava firmemente, a despeito da idade avançada e estar há muito aposentado.
       Cara honrado, que todos diziam ser bom marido, bom pai, bom avô, bom profissional. E bom cliente, isso ela poderia afirmar.
  Minha netinha caçula cismou com uma dessas pulseiras, que quando esticam, viram cinto. Eu nunca tinha visto isso, mas como ela me garantiu que aqui eu encontraria, vim comprar. Até que achei engraçadinha, e útil...Tudo que eles pedem eu faço; quem mandou eu ser avô coruja? – sorriu tão amorosamente, que Nelise se sentiu como se fosse da família daquele grande homem. – Já estou indo embora. Quer uma carona?
Constrangida, Nelise disse apenas:
  Não, muito obrigada! Vou ficar mais um tempinho aqui...
       Ele a encarou por dois segundos, um tanto intrigado que uma moça ainda jovem e bonita, permanecesse parada em um estacionamento tão isolada.
Riu-se internamente ao imaginar, no seu coração generoso, que ela esperasse alguém, e esse alguém só estivesse ligeiramente atrasado.
  Até amanhã! Vamos nos ver lá no seu trabalho... – sorriu – Tchau! – acenou. Nelise acenou de volta.
      Sem ter muita opção, resolveu formar pensamento sobre o que ocorrera por todo o tempo que se encontrara no shopping.
     A única pessoa que a tratara genuinamente bem, era um senhor riquíssimo, um sabedor que as vestes elegantes, pertenciam a uma pessoa simples, alguém  apenas cismado em se arrumar melhor para um dia de domingo. Ficou pensativa do porquê aquele domingo de passeio, ter esse rumo bizarro.
Aplumou-se imediatamente.
Era hora de voltar ao lar, e sentir os bracinhos do filho que a abraçariam com amor, pedindo para ela dar rodopio.
Voltaria, curtiria bastante aquele domingo que ainda tinha pela frente.
Mais tarde, quando já deitada em sua cama de solteira, repassou todos os afazeres que teria no dia seguinte.
      Fechou o cenho revoltada, ao se dar conta que não agiria nada diferente de todos os atendentes que encontrara naquele shopping traumático: “O senhor pode pagar com cartão. Aproveite a promoção! Deixando o carro por duas horas, trinta reais. Por aí o senhor não vai encontrar nada melhor...”; “Não aceitamos cheque. Está ali na placa, pode conferir!”; “Funcionamos 24 horas, mas a partir das vinte horas, o preço muda. Senhor, não insista! Já são vinte e quinze! O valor muda, já expliquei!”
Iria ficar muito tempo numa angústia profunda, se não pousasse no pensamento, um conforto mental:
“Pelo menos” – concluiu –, “eu não estrago o domingo de ninguém...” Virou-se satisfeita, e dormiu o sono dos justos.



Quem quiser ler todos antecipadamente, poderá acessar o link, que está no site Mary Difattohttp://www.marydifatto.com.br/2019/01/imprevistos-de-uma-viagem-cotidiana.html

(Imagem:

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